Em pouco menos de uma semana, a Argentina deixou de ter embaixador espanhol em Buenos Aires, arrisca-se a ver o seu presidente declarado 'persona non grata' em Madrid e coloca em risco algumas posições de investimento determinantes para a sua economia, dado que Espanha é o segundo país de onde origina mais investimento estrangeiro. Asfixiada por uma crise económica grave, a economia argentina pode encontrar aqui novo obstáculo originado por um incidente diplomático na primeira viagem de Javier Milei como presidente.
O que disse o presidente da Argentina para originar esta polémica?
No congresso do partido de extrema-direita espanhol Vox, realizado este fim-de-semana em Madrid, Javier Milei, presidente argentino, classificou a esposa de Pedro Sánchez, primeiro-ministro espanhol, de “corrupta”. O encontro reuniu várias figuras da nova direita global, incluindo o presidente argentino ou André Ventura, líder do Chega, e contou com uma participação de Milei naquela que foi a sua primeira viagem após ser eleito.
“As elites globais não entendem o quão destrutivo pode ser implementar as ideias socialistas”, começou por referir o presidente argentino, antes de acrescentar: “mesmo quando tem uma mulher corrupta, suja-se e tira cinco dias para pensar nisso.”
O chefe de Estado argentino referia-se à polémica recente que ameaçou a continuidade de Sánchez como líder do governo espanhol, quando o primeiro-ministro anunciou estar a equacionar sair da corrida eleitoral por ataques recorrentes à família. Em particular, Begoña Gómez, esposa de Sánchez, foi alvo de um inquérito formal pela Justiça espanhola no final de abril, inquérito esse que acabou rapidamente arquivado.
A ação da justiça foi motivada pela queixa de um movimento de direita chamado ‘Manos Limpias’ (‘Mãos Limpas’, em português), que, entretanto, admitiu a possibilidade de esta se ter baseado em pressupostos falsos – incluindo notícias de internet desmentidas desde então.
Como reagiram ambos os governos?
O Executivo espanhol oi rápido a pedir explicações ao presidente argentino, exigindo que se retrate das declarações. Apesar de reconhecer que as palavras de Milei não espelham “o grande povo argentino”, Sánchez lembrou a história que une as duas nações para argumentar que o novo presidente “não esteve à altura” do cargo.
“Entre os governos, os afetos são livres, mas o respeito é irrenunciável. Portanto, pedimos ao atual presidente da República da Argentina uma retificação pública”, afirmou Sánchez num encontro com empresários em Madrid no dia seguinte às declarações de Milei.
Já o presidente do país das pampas anunciou na rede social X, antigo Twitter, a sua chegada depois de ter “surfado uma onda de lágrimas socialistas”. Numa entrevista a uma cadeia de televisão argentina na segunda-feira, Milei reforçou as suas palavras, argumentando que o pedido de desculpas teria de ser dirigido a ele após as acusações do ministro dos Transportes de Espanha, Óscar Puente, que consumiria drogas.
Outros membros de ambos os governos apressaram-se a manifestar o seu apoio pelos respetivos líderes. O ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol, frisou a necessidade de um pedido de desculpas formal por parte de Buenos Aires, classificando as declarações como “um ataque à nossa democracia”.
Do lado argentino, o ministro do Interior lembrou as palavras de Puentes sobre o alegado consumo de substâncias por parte de Milei, argumentando que o chefe de Estado argentino havia sido desrespeitado primeiro.
Quais são as consequências políticas?
No imediato, a relação diplomática entre Madrid e Buenos Aires deteriorou-se assinalavelmente, com o ministro dos Negócios Estrangeiros espanhol a chamar a embaixadora na Argentina à capital espanhola para discutir o incidente. No limite, Espanha terá de nomear novo representante para a Argentina após a resolução deste incidente.
Por outro lado, as autoridades espanholas estão a equacionar declarar Milei ‘persona non grata’, isto menos de um mês antes de o presidente argentino ter agendada a entrega de um prémio do Instituto Juan de Mariana.
Do lado argentino, a reação tem passado sobretudo por declarações de Milei e outros membros do governo. Dois dos porta-vozes da presidência manifestaram o seu apoio ao presidente, exigindo um pedido de desculpas a Madrid, tal como o ministro do Interior argentino.
Já o ministro da Economia de Buenos Aires apelidou Sánchez de “imaturo”, dada a importância que atribui a declarações do foro pessoal.
Quais os possíveis efeitos económicos deste incidente diplomático?
Sendo Espanha o segundo maior investidor externo na economia argentina, as consequências para ambos os países podem facilmente extravasar o plano diplomático. A posição de investimento direto espanhol está próxima dos 18 mil milhões de euros, representando uma parte fundamental do tecido produtivo no país sul-americano.
O líder da confederação empresarial espanhola, a CEOE, já procurou colocar alguma água na fervura, dada a importância das relações entre ambos os países. Antonio Garamendi afirmou em entrevista à Cadena Ser que as declarações de Milei foram desadequadas, rejeitando as acusações.
Mergulhada numa profunda crise económica causada por inflação galopante, fuga de investimento e atividade em queda, que tem causado graves problemas sociais, a economia argentina não se poderá dar ao luxo de perder o ímpeto dado por empresas de grande dimensão como a Telefonica, o Santander, a Iberia ou o BBVA.
Os líderes destas empresas secundaram as declarações de Garamendi, pedindo respeito pelas famílias dos políticos espanhóis e lembrando as ligações históricas e culturais entre os dois países. Sendo uma antiga colónia espanhola, a Argentina conseguiu a independência em 1810, tendo estabelecido relações cordiais a partir de 1863.
Em 2022, as exportações espanholas para a Argentina chegaram a 1,18 mil milhões de euros, com os veículos e componentes a constituírem a maior fatia deste montante. Em sentido inverso, as importações vindas do país sul-americano chegaram a 1,58 mil milhões de euros, sendo dominadas sobretudo por matérias-primas alimentares.