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Miguel Herdade: “O papel das universidades não é só formar para o mercado”

O diretor associado do Ambition Institute no Reino Unido diz ao JE que o nosso cérebro precisa mesmo de decorar para aprender e defende que um sistema de ensino que alimenta apenas as necessidades do mercado de trabalho é muito limitativo. “A universidade é um sítio que expande as fronteiras do cérebro humano e enriquece os conhecimentos de cada um”, salienta.

Miguel Herdade é, apesar da sua juventude, uma referência nos estudos sobre desigualdades no acesso à educação. Diretor associado no Ambition Institute no Reino Unido, foi professor assistente na Nova SBE – School of Business and Economics e cofundador e diretor executivo da Academia do Johnson, na Amadora. Recentemente participou em Lisboa na 2ª edição do ciclo Challenging the Future, organizado pelo BNP Paribas Portugal, dedicado ao tema: “A educação hoje: novas Fronteiras”, onde usou a sua experiência internacional na área da educação para avaliar o ensino português: “Temos um sistema de ensino que alimenta as necessidades técnicas do mercado de trabalho e isso é limitativo, porque o papel das universidades não é só formar para o mercado. Faz falta ver a universidade como um sítio que expande as fronteiras do cérebro humano e que enriquece os conhecimentos de cada um”.

Ao Jornal Económico, dias depois, afirmou de forma veemente: “Não tenho nada a certeza de que esse “casamento” entre as universidades e as necessidades do mercado de trabalho seja totalmente necessário ou desejável”.

Como estão os estudantes a ser preparados para lidar com a chamada Inteligência Artificial e as Tecnologias da Informação?
A inteligência artificial e aplicações como o ChatGPT entraram nas nossas vidas há relativamente pouco tempo. Apesar de despertarem um misto de curiosidade, medo, e ansiedade em pais, alunos e professores, penso que o sistema de ensino ainda não está preparado para lidar com o assunto – o que é perfeitamente natural, do meu ponto de vista.
Claro que há preocupações relativamente urgentes, porque os alunos podem usar estas ferramentas para fazer os trabalhos e os professores ainda não tiveram nem tempo nem a formação necessária para se adaptar a esta realidade. Algumas universidades em países como a Suécia e a Austrália tomaram decisões curiosas como regressar a exames em papel e lápis em vez de trabalhos escritos. Eu compreendo esta reação no curto prazo, mas penso que num futuro muito próximo tanto as escolas como as universidades vão acolher estas ferramentas com imensa naturalidade. Agir de outra forma seria como tentar parar o vento com as mãos.
Em primeiro lugar, é provável que as escolas acabem por incorporá-las para ajudarem os alunos a aprender melhor. Por exemplo, já vejo professores a usarem o ChatGPT para os alunos treinarem línguas como o inglês: o professor pede como trabalho de casa para aos alunos escolherem um tópico de conversa que têm com o chat, e como este dá perguntas e respostas, obriga os alunos a treinar. No dia seguinte, em aula, veem e avaliam de que forma é que o aluno podia ter conduzido melhor a conversa, ou articulado melhor as suas respostas.

 

Mas há contras…
Claro que é possível que a Inteligência Artificial traga efeitos negativos para o sistema de ensino – mas a boa notícia é que, enquanto sociedade, nós temos o poder de agir e tomar ações para tirar o maior partido do potencial tecnológico e evitar efeitos negativos. No fundo, acredito que muito em breve o uso da inteligência artificial vai ser totalmente integrado na forma como os alunos e professores interagem e não estou excessivamente preocupado com os estudantes estarem preparados para lidar com a Inteligência Artificial. Quando andei na escola, também toda a gente estava muito angustiada por causa da Google, porque se achava que os alunos iam deixar de ter incentivo para decorar e perceber coisas, uma vez que tudo estava à distância de um clique. Antes disso, nos anos 80, também toda a gente tinha medo de que o aparecimento das calculadoras gráficas levasse a uma geração preguiçosa incapaz de fazer cálculo matemático. Hoje acho seguro dizer que as calculadoras conseguiram ajudar a termos muitos mais alunos a ir mais longe na matemática do que nas gerações anteriores.

 

É expectável que venhamos a ter resultados idênticos?
Tal como aconteceu com as calculadoras, a Inteligência Artificial tem um enorme potencial para puxar pelos conhecimentos dos alunos e até ajudar-nos a responder e adaptar o ensino às necessidades educativas de cada aluno. Claro que há riscos, porque estes modelos de linguagem se assemelham muito a humanos e são extraordinariamente articulados, convincentes e credíveis, podendo manipular ou induzir as pessoas em erro, por isso as pessoas e os alunos vão ter a necessidade de ter conhecimentos de base sólidos, e de cultura geral para compreender de forma crítica as respostas geradas por estes modelos de linguagem de Inteligência Artificial. Paradoxalmente, isso talvez traga consigo a necessidade de voltarmos a focar-nos na ideia que é importante “decorar coisas”, como os nomes dos rios ou os reis da primeira dinastia. Durante alguns anos, criou-se o mito de que “decorar não é aprender”, mas hoje graças aos avanços das neurociências e o nosso entendimento de como funciona a memória, sabemos que essa ideia é um disparate, e que o nosso cérebro precisa mesmo de decorar para aprender. Portanto, na minha opinião, a melhor preparação que o nosso sistema de ensino pode dar aos alunos para lidar com a Inteligência Artificial pode passar mesmo por garantir essa base de conhecimentos sólidos.
Além disso, se bem usada, a Inteligência Artificial pode dar-nos esperança para responder a uma das maiores dificuldades do sistema de ensino português, que é diminuir as desigualdades na escola. Contudo, isto só é possível se estas ferramentas estiverem ao alcance das famílias mais pobres, e libertar recursos nas escolas que possam ser reinvestidas para apoiar as crianças mais desfavorecidas. Caso contrário, como aconteceu durante a pandemia, vamos apenas aumentar o fosso entre alunos ricos e pobres – temos que garantir que isso não acontece.

 

Na sua perspetiva como estão os estabelecimentos de ensino superior a “casar” os programas curriculares com as necessidades que emergem no mercado de trabalho, cada vez mais ligadas a estas duas questões?
O sistema de ensino, e também as universidades, têm obviamente um papel essencial na preparação do capital humano e da força de trabalho. Aliás a evidência empírica demonstra claramente que cada ano que andamos na escola ou na universidade vai gerar um aumento dos nossos ordenados ao longo da vida.
O mercado de trabalho tem as suas dinâmicas, e as pessoas têm o incentivo em ver o maior retorno ao seu investimento no ensino superior investindo em cursos que correspondem a melhores saídas profissionais ou empregos com ordenados mais altos. Por exemplo, em Portugal, os dados do Eurostat dizem-nos que a percentagem de emprego em sectores tecnológicos aumentou 10 pontos percentuais nos últimos 10 anos, e, portanto, é natural que as pessoas sintam um incentivo em ir para as áreas tecnológicas e haja uma grande procura pelas engenharias, matemática e ciências.
Contudo, não tenho nada a certeza de que esse “casamento” entre as universidades e as necessidades do mercado de trabalho seja totalmente necessário ou desejável. Aliás, como disse acima, com o advento destes modelos de Inteligência Artificial talvez, mais do que nunca, vamos ter a necessidade de ter pessoas que estudem clássicos, humanidades e artes. Coincidência, ou não, uma das pessoas portuguesas mais importantes nesta área, que se chama Daniela Braga, CEO da Defined AI na Califórnia, estudou literatura e estudos portugueses. Pode parecer surpreendente, mas se pensarmos bem o ChatGPT, por exemplo, é isso mesmo: um modelo de linguagem (large language models).

 

Como vê o futuro?
Tenho alguma esperança, provavelmente de forma ingénua, de que no futuro próximo as pessoas – e os empregadores – voltem a ver a universidades como locais onde aprendemos coisas de que gostamos, onde interagimos com diferentes áreas de conhecimento, onde aprendemos coisas que são importantes para a sociedade e não apenas úteis para um mercado de trabalho que não fazemos ideia como vai ser. Eu gosto de pensar que teríamos um país melhor se os nossos advogados aprendessem mais matemática e os nossos engenheiros tivessem umas aulas de escrita criativa ou história de arte.