Há mais de 250 anos, um empresário britânico foi convidado pelo Marquês de Pombal a salvar a Fábrica de Vidro da Marinha Grande, distrito de Leiria. Guilherme Stephens tinha sofrido na pele com o terramoto/tsunami de Lisboa em 1755, mas viu uma oportunidade de negócio: a produção de cal que viria a ser necessário para reconstruir as casas da capital. Primeiro, ficou falido, depois, enriqueceu. Forjou uma boa relação com Sebastião José de Carvalho e Melo que o convidou para salvar a indústria vidreira nacional.
A escolha da Marinha Grande para esta fábrica deveu-se, em parte, à existência de grandes quantidades de combustível para os fornos vidreiros: a madeira do pinhal do rei D. José I em Leiria. Atualmente, os fornos são alimentados a gás natural, mas a ambição é a descarbonização da indústria, alimentando os fornos com hidrogénio verde, produzido a partir de fontes de energia renovável.
É este o objetivo da Rega Energy, que tem planeada uma central de produção de hidrogénio verde na Marinha Grande para abastecer três grandes empresas produtoras.
"Estamos a desenvolver neste momento dois projectos que estão em fase mais avançada do lado do hidrogénio. Um na Marinha Grande para a indústria de vidro. E outro em Coimbra para a indústria do cimento. O mais avançado é este da Marinha Grande. Contamos, caso consigamos fechar o acordo com estes clientes, que são a Crisal, BA Glass e Vidrala, vir a fornecer o primeiro hidrogénio verde aos clientes, à indústria de vidro" no início de 2027, disse, ao Jornal Económico, João Rosa Santos diretor comercial da Rega Energy. O investimento supera os 100 milhões de euros.
Este é um projeto de autoconsumo coletivo, com fornecimento direto ao cliente final. "É uma unidade de produção de hidrogénio muito próxima dos clientes e depois são cerca de uma dúzia de quilómetros até chegar a cada cliente".
O gestor explica que o modelo de negócio "assenta na produção, na distribuição, no fornecimento" do hidrogénio verde. "A receita é com base no que nos pagam no recebimento dessa energia. Nós somos o investidor da central e a nossa remuneração é com base na energia que vendemos. São investimentos 100% privados, parte equity e outra parte é dívida, ou seja, investimento, investidores e banca".
"Somos produtores de energia verde, essa energia para a qual também precisamos de eletricidade para a produzir. A empresa é 100% portuguesa, sediada em Lisboa, com cerca de 40 funcionários, com uma delegação na Maia, já com mais de 15 funcionários e uma pequenina delegação em Coimbra. ainda que os investidores sejam estrangeiros", disse sobre os franceses da Swen Capital Partners, produtor de bioetanol, e promotor de renováveis.
A história da indústria vidreira da Marinha Grande conta com quase 280 anos de vida, mas a história da indústria em Portugal começa longe da cidade do distrito de Leiria.
Há mais de 300 anos, foi inaugurada a Real Fábrica de Vidros de Coina, no distrito de Setúbal, a mais de 150km a sul.
Esta iniciativa do rei D. João V tinha como objetivo diversificar a economia do reino, pois então o país não produzia.
Inicialmente, a fábrica pertencia à Fazenda Real, mas em 1731 teve várias administrações privadas. Entre eles, a do irlandês John Beare que transferiu a fábrica para a Marinha Grande, como recorda a Câmara Municipal do Barreiro.
A transferência, que acontece em 1747, nasce de uma aparente disputa sobre o uso de combustível para a produção de vidro: o rei proíbe o uso de madeira dos seus pinhais. Em alternativa, começou-se a importar carvão (hulha) de Inglaterra, mas prejudicou a rentabilidade do projeto.
A Marinha Grande não foi escolhida por acaso: tinha acesso a bastante matéria-prima, como a lenha, sílicas e argilas.
A fábrica entra em decadência e é então que o Marquês de Pombal convida Guilherme Stephens a assumir as rédeas, a mando do rei D. José I.
O empresário inglês já gozava de boas relações com Sebastião José de Carvalho e Melo e o monarca, pois tinham aceitado a sua proposta para uma fábrica de cal no vale de Alcântara em Lisboa, recordou o "Diário de Notícias" em 2019. A amizade entre os dois perdurou, mesmo após o Marquês de Pombal cair em desgraça.
A capital portuguesa tinha sido destruída pelo terramoto de 1755 e existia uma grande necessidade de materiais para reconstruir Lisboa.
Já em 1769, sob a batuta do inglês Guilherme Stephens, a fábrica ganha o estatuto de Real Fábrica de Vidros, elevando o seu prestígio.
"O estabelecimento de uma unidade de fabrico manual de vidros e vidraças no lugar da Marinha Grande deveu-se à necessidade de grandes quantidades de combustível para os fornos vidreiros, solução que passou a ser garantida pela proximidade do pinhal do rei ou de Leiria, cuja dimensão, administração estatal e recursos eram uma segurança para fixação de uma indústria que consumia enormes quantidades de lenha para o seu funcionamento", recorda Jorge Custódio, no seu relatório final para um Programa de Valorização Cultural, e de Ocupação Funcional, do espaço da Fábrica de Vidros da Marinha Grande.
Guilherme Stephens morre em 1803 e o seu irmão João Diogo Stephens fica a liderar o projeto até 1825, ano da sua morte.
"No final da sua vida, Diogo Stephens deixou a Fábrica de Vidros com todo o seu património e pertences ao «Reino» de Portugal, para «benefício» da «gente e famílias empregadas neste empreendimento», assim como «a prosperidade, a estabilidade, e a permanência acompanhem esta útil e bela fábrica, a benefício da Marinha Grande» (Testamento, 24 de Maio de 1825). Este acontecimento tornou-se simbólico e foi igualmente um momento genesíaco da comunidade vidreira e da história da Marinha Grande", escreveu Jorge Custódio.
O Estado português "acolheu a herança dos Stephens ao longo de cerca de 180 anos, mantendo a sua responsabilidade pública de herdeiro e detentor da Fábrica de Vidros, assumindo o papel de um proprietário prudente a quem era devido resolver, por um lado, a utilidade industrial da fábrica de vidros e sua rentabilidade económica e social, procurando evitar os efeitos nefastos para a economia e para os orçamentos de Estado e, ao mesmo tempo, perpetuando-a em nome da continuidade da indústria naquele lugar ao serviço dos vidreiros da Marinha Grande, dando cumprimento aos valores sociais determinados no texto dos testamentos dos Stephens, o que, em tempos de crise, também constituía uma garantia de trabalho e assistência aos seus artífices, operários e respectivas famílias, através de subsídios estatais ou soluções de oferta de trabalho no Pinhal de Leiria", acrescentou.
A FEIS – Fábrica-Escola Irmãos Stephens acabou por fechar em 1992. "“Fábrica Velha” fechou há 30 anos e ainda se faz o luto na Marinha Grande", escreveu o Jornal de Leiria em novembro de 2022, dando conta que foi o "início do fim da indústria de vidro manual no concelho". "As indústrias de vidro de embalagem e de cristalaria automatizadas da Marinha Grande prosperam hoje, mas soprar e manusear o vidro de forma artesanal é um ofício que já poucos dominam".