Há um ano, o mundo assistiu a mais um ataque de um grupo radical palestiniano em solo israelita. Mas, à medida a que as notícias iam sendo conhecidas, o mundo entendeu, atónito, que não era apenas mais um ataque no meio de uma imensidão de retaliações que começaram bem antes de 14 de maio de 1948 – o dia da formação do Estado de Israel e do início da primeira guerra entre árabes e israelitas. O ataque de 7 de outubro foi especial e inesperadamente violento, mostrando uma barbárie de que nenhuma ação anterior se tinha aproximado: foi dirigido contra um grupo de jovens que se distraia com música e copos de refresco e resvalou para os moradores da região, seguindo sempre um registo de incivilidade pré-medieval. O resultado foi a eliminação de mais de 1.200 civis – o mais mortífero de sempre – e o rapto de cerca de 200 que, percebeu-se depressa, serviria para posterior negociação, num macabro jogo de chantagem que, percebeu-se também, acabaria na morte de muitos deles.
A utilização de civis como alvo e elemento de troca teve duas consequências imediatas: impediu a proliferação rápida e costumeira de mensagens de apoio ao martírio dos palestinianos por parte das forças de esquerda europeias, e evidenciou que implicaria uma retaliação em ordem por parte de Israel. As teorias da conspiração apontam para que o ataque de 7 de outubro se deu porque era preciso impedir que os Estados Unidos continuassem a convencer os países islâmicos – especialmente os países árabes e muito especialmente a Arábia Saudita – a assinarem os chamados Acordos de Abraão, a única ideia digna de registo saída do cérebro de Donald Trump nos quatro anos que dedicou à presidência dos Estados Unidos. Carece de melhor prova, mas é uma explicação.
A retaliação de Israel, liderada pelo governo mais à direita da pequena história de Israel tendo à cabeça Benjamin Netanyahu, não foi, ao contrário, nenhuma surpresa. Habituado a viver à margem da lei internacional e das resoluções das Nações Unidas (mesmo que sejam muito poucas aquelas que chegam a tomar a forma de resolução, dado que a maioria encalha no Conselho de Segurança), e dando um crédito muito superficial aos direitos humanos, percebeu-se depressa que a resposta do Estado hebraico seria medonha.
A solução final
A ação das forças de defesa de Israel (IDF), comandadas pelo executivo, depressa mostrou que, a coberto da procura o paradeiro dos reféns, a intenção era a de acabar com o maior número de palestinianos – quer disparando diretamente sobre eles, quer não cuidados minimamente dos efeitos colaterais dos ataques a edifícios, subterrâneos, muros e valas de água. O desconfortável termo ‘solução final’ foi adotado por alguns críticos quando, depois de ter transformado a Faixa de Gaza no deserto de escombros e cadáveres que ninguém tempo para enterrar, o exército começou a patrocinar a exportação de atrocidades para a Cisjordânia. Era toda a Palestina que estava sob fogo das IDF, onde quer que estivesse um palestiniano – mesmo que esse sítio fosse na Síria e no Líbano e por muito pouco também no Egito, que teve de reforçar as tropas deslocadas para a fronteira com Israel, impedindo uma invasão idêntica à de 1957.
Entretanto, e ao mesmo tempo que o morticínio assumia proporções bíblicas, começaram umas tímidas retaliações no norte de Israel, junto à fronteira com o Líbano, perpetradas pelo Hezbollah, um grupo radical irmão do Hamas (ou talvez primo, dado que os primeiros são xiitas e os segundos são sunitas). Israel tratou de responder com a sofreguidão que lhe é costumeira, induzindo o endurecimento da resposta militar do lado de lá da fronteira, ao mesmo tempo que fazia incursões na Síria e no Yémen. Mas os analistas depressa entenderam que estas escaramuças de fronteira tinham um alvo mais afastado: o Irão.
O exercício de troca de retaliações deu-se em abril, com um ataque iraniano a solo israelita, o primeiro alguma vez acontecido, que pretendeu ser pouco mais que um aviso: foi anunciado com gentiliza e não procurava nenhum alvo civil. Mas isso não era o mais importante: o Irão tinha caído na armadilha. Entre iranianos e israelitas estava aberta a guerra das retaliações – que seguiu primeiro por via dos assassinatos cirúrgicos de membros do Hamas e do Hezbollah, mais tarde por um segundo ataque iraniano a Israel e finalmente por qualquer coisa que ainda ninguém sabe o que é. Mas será mau.
Duas mortes lamentáveis
A história recente das relações entre Israel e a Palestina são marcadas por duas mortes. A primeira, foi o assassinato, às mãos de um judeu radical chamado Ygal Amir, do então primeiro-ministro Yitzhak Rabin, a 4 de novembro de 1995. No chão da Praça dos Reis de Israel (agora Praça Rabin) morreu também o processo que mais tinha aproximado judeus e palestinianos de uma qualquer coisa parecida com a paz. As peripécias do destino fizeram com que, quando soube da morte de Rabin, o líder palestiniano Yasser Arafat estivesse acompanhado de dois portugueses: Mário Soares e Francisco Seixas da Costa.
Depois foi a vez do próprio Arafat morrer – estranhamente, referem alguns, de causas naturais, a 11 de novembro de 2004. E foi aí que começou o 7 de outubro de 2023. Por razões de pura estratégia, o Estado de Israel decidiu que a sua melhor opção seria a de separar a causa palestiniana em duas fações antagónicas, que tratassem de gastar energias numa guerra civil e deixassem os israelitas em paz. Foi uma estratégia bem-sucedida: a guerra civil aconteceu mesmo e o mundo palestiniano separou-se entre a Cisjordânia controlada por uma Autoridade Palestiniana crescentemente domada ao dinheiro ocidental e a Faixa de Gaza, onde o Hamas, dotado de armas e munições oferecidas por Israel, sobrevivia entre muros e lamentações, mendigando aos doadores internacionais umas côdeas para a sobrevivência da desgraçada população. Pois bem, a 7 de outubro, essa desgraçada população revoltou-se. E por muito que não tivessem gostado do método, com certeza diriam na altura que “Somos todos Hamas”. É o que dirão os seus filhos, os seus netos e os seus bisnetos – e é por isso que talvez tenham razão os comentadores que asseguram que nenhum dos habitantes do planeta Terra que neste momento estão vivos, viverá o suficiente para ver o fim da guerra entre israelitas e palestinianos.