O advogado David Sequeira Dinis cuja principais áreas de prática são insolvência, situações de crise e contencioso, antecipa que a partir do próximo mês e até março se verifique um aumento dos processos de reestruturação em empresas do sector secundário e defende uma clarificação "urgente" das tabelas de pagamentos aos administradores judiciais.
Há pouco mais de um ano entraram em vigor novas regras relacionadas com a reestruturação de empresas. Já é possível medir algum impacto desta legislação? Veio trazer melhorias?
A resposta é, provavelmente, não. A diretiva de reestruturações foi transposta, já passou um ano e quatro meses, e o que é que se sente? A diretiva trouxe várias coisas novas e uma das primeiras foi a necessidade de adaptarmos o nosso Processo Especial de Revitalização (PER) à organização do universo de credores por categorias. Estas regras são forçosamente aplicáveis às empresas maiores e as PME podem aplicar as regras que já existiam anteriormente.
Portanto, no fundo coexistem agora dois PERs: um com categorias e um tradicional. A verdade é que, vistos os números dos PER em Portugal, conclui-se que não existiram muitas reestruturações através de processos especiais de revitalização e, muito menos, através do recurso a este novo regime da categoria. Conversando com outros colegas, magistrados e administradores judiciais, constata-se até que a maior parte deles ainda não fez nenhum desses PER.
Qual é o motivo?
Primeiro, hoje há o RER, um regime que permite obter, no essencial, os mesmos benefícios fiscais que o PER fora de um quadro judicial, portanto é um procedimento é bilateral ou multilateral, mas que dispensa a universalidade ou quase universalidade e a intervenção do tribunal. Sempre possível, os operadores preferem recorrer a este instrumento. Há uma série de PER que existia antigamente, que se destinavam única e exclusivamente a fazer operações para ter benefícios fiscais, que hoje seguem o regime do RER. Segundo, a verdade é que há poucos PER seja de que espécie for. O novo regime tornou as coisas mais complexas, mais exigentes do ponto de vista da preparação e a exigir a intervenção de profissionais mais qualificados, o que é positivo. É bom que deixe de haver os PER à trouxe-mouxe, só para empatar e só para ganhar tempo, feitos por conta e respeito de qualquer profissional – com o devido respeito - de vão de escada.
A alteração legislativa veio nesse sentido…
Completamente nesse sentido. Queria moralizar o recurso a este tipo de instrumentos e profissionalizar o seu uso. Tudo isto são fins que interessam, mas a verdade é que o tecido económico português não tem sentido necessidade de pedir PER. Já noto alguns a entrar, mas no último ano não.
Ao nível do turismo e do imobiliário, os casos mais patológicos já foram resolvidos na última crime. No turismo, há muita atividade, as margens subiram bastante e é um sector que está pujante. O imobiliário, ainda que se diga que está a arrefecer um bocadinho, também. Além disso, ainda houve benefício dos fundos que foram disponibilizados pelos governos no âmbito da Covid-19. De facto, houve bastante liquidez a ser disponibilizada nessa altura para impedir que houvesse um “tsunami de insolvências”, como se dizia, e também permitiu uma almofada para proteger estas duas áreas. Já não é assim na indústria.
O sector da indústria sofreu muito com a crise energética. Imagine aquelas empresas que têm fornos e dependem do calor e de um consumo energético intensivo. Posso-lhe dizer que chegámos a fazer reestruturações de duas empresas do sector industrial, porque a conta da eletricidade subiu 1200% numa e 900% na outra. Passou a ser completamente incomportável.
Chegámos a fazer reestruturações de duas empresas do sector industrial, porque a conta da eletricidade subiu 1200% numa e 900% na outra. Passou a ser completamente incomportável.
Então, o maior número de PER verifica-se agora na indústria?
Os PER que tenho tido, maioritariamente, são no sector da indústria. No entanto, isso não corresponde às estatísticas e às conversas que temos tido com os operadores que mostram que os números são mais baixos. Acho que o sector da indústria é difícil, no sentido que há pouca consolidação e um receio enorme de entrar num processo que possa conduzir a uma insolvência. O empresário tem bastante receio, quiçá por desconhecimento.
Algum conservadorismo?
Muito. Recebi aqui alguns industriais que estão a tentar, até a última, reestruturar extrajudicialmente – fazem bem -, mas que, muito provavelmente, alguns deles vão ter de recorrer a instrumentos judiciais já em setembro. Acho que na rentrée, depois do verão e até ao primeiro trimestre do próximo ano, haverá pelo menos neste setor, um aumento considerável de restruturações – RER e PER – neste sector.
Noto também outra questão, comum aos sectores do turismo, imobiliário e indústria: o facto de que os bancos hoje estão muito mais “calçados”, os créditos já estão muito provisionados, os NPLs já foram muito vendidos do que em 2011, por exemplo. A pressão que a banca exerceu no passado era maior.
As recentes estatísticas da Cosec apontavam para um aumento de 12% das insolvências no primeiro semestre. Qual é a sua previsão? Falava-se de que, com o fim dos apoios da pandemia, essa percentagem ia aumentar exponencialmente, o que acabou por não acontecer. É em dezembro de 2023 que, de facto, haverá repercussões?
Não me custa nada admitir: eu fui um dos que se enganou. Achei que a seguir ao fim da Covid, em 2022. Depois de ter perdido essa aposta não ouso fazer outra. No entanto, na minha opinião, no acho que haverá um incremento relevante nos próximos seis meses. Admito que uma parte grande seja restruturações extrajudiciais e vários casos tenham de passar por PER.
O tema dos cálculos da remuneração variável e majoração da remuneração dos administradores judiciais vai aquecer
No âmbito da diretiva, surgiu também a questão da remuneração dos administradores judiciais. Têm criado litigância?
Tem sim. Não é algo que decorre da transposição de diretiva, mas tem que ver com o pacote que foi feito em Portugal sobre insolvências e reestruturações. Eu acho que a lei é bastante insuficiente, não é particularmente clara e gera bastantes dúvidas interpretativas. Acho que os tribunais têm procurado clarificar bastante essas matérias difíceis.
Por exemplo, a primeira questão que surgiu foi se a nova lei era aplicável só aos processos novos ou aos processos pendentes – apesar da norma expressa a dizer que se aplicava aos pendentes também – porque, como a nova lei vem aumentar de forma muito significativa a remuneração dos administradores judiciais, deparámo-nos todos com algumas decisões em primeira instância que tentavam restringir o âmbito de aplicação da lei apenas aos processos novos. Atualmente, esse tema está consolidado na jurisprudência das relações, ainda que não haja uma decisão do Supremo.
Depois, há duas questões magnas: saber como é que se calcula a remuneração variável em caso de liquidação e insolvência e PER e saber, neste contexto também, se existe algum limite que se aplica à remuneração variável e à própria majoração que é feita. É algo que continua em aberto. Os senhores administradores judiciais, no quadro dos seus legítimos direitos, têm recorrido e vão contestar bastante. Já criou e vai criar ainda mais litigiosidade até se definir isso, porque podemos estar a falar da diferença entre receber acima de um milhão ou 100 mil euros. Vai aquecer. A meu ver, acho que se impunha uma alteração legislativa urgente. Sempre fui muito sensível à necessidade absoluta de serem bem pagos para serem incentivados a fazer um bom trabalho.