A coligação PAI (Plataforma Aliança Inclusiva) – Terra Ranka, liderada pelo PAIGC, foi convidada pelo presidente da Guiné-Bissau, Umaro Sissoco Embaló, para formar governo, depois de ter conseguido a maioria absoluta nas eleições de junho passado. O executivo não é liderado pelo presidente do partido, Domingos Simões Pereira – Embaló havia prometido que se recusaria a convidá-lo – que entretanto assumiu a posição de líder da Assembleia Nacional, mas por Geraldo Martins. Aparentemente, estão reunidas condições de estabilidade política necessárias e suficientes para o país encetar o caminho da normalização política.
É essa, pelo menos, a expectativa de Teresa Damásio, administradora do Grupo Ensinus e profunda conhecedora da realidade daquele país africano, que, em entrevista ao JE, afirma que a grande prioridade do novo executivo é a alteração da Constituição – no sentido de lhe retirar caraterísticas de presidencialismo que têm sido um dos fatores desestabilizadores do país.
Há condições de estabilidade política no atual quadro partidário da Guiné-Bissau?
A coligação PAI Ranka fez uma coligação pós eleitoral depois de ter havido uma anterior coligação pré-eleitoral, com vários partidos – entre eles o PRS, o Partido da Renovação Social, a terceira força no Parlamento, a que foram entregues várias pastas no novo governo. O novo governo não é apenas de militantes ou personalidades ligadas ao PAIGC. O governo tem vários partidos.
Com que intenção?
O PAIGC ficou muitíssimo preocupado com a possibilidade de haver uma revisão constitucional que aumentasse os poderes do presidente da república. Trazendo para o governo ministros do PRS, conseguem, na Assembleia Nacional, uma maioria. O PAI Ranka tem maioria absoluta, mas não chega para uma revisão constitucional. Com este acordo pós-eleitoral, já conseguem essa maioria para uma revisão constitucional onde não haja o reforço dos poderes presidenciais. É isso que está em causa. Assim se compreende que o presidente da República não se tenha candidatado a um segundo mandato à frente da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), porque deixou de ter dois grandes apoios: o antigo presidente da Nigéria e o presidente do Senegal, que está com inúmeros problemas no seu país.
A estabilidade surge por essa via, portanto.
Creio que finalmente temos estabilidade na Guiné-Bissa: temos um Parlamento que demorou a tomar posse, demorou uma anormalidade de tempo, mas tomou; constitui-se a mesa, onde está um membro do partido Madem; a Assembleia Nacional já teve uma sessão extraordinária; e o governo está finalmente constituído e já houve também a passagem das pastas dos antigos para os novos ministros. São tudo bons indicadores. Entretanto, o presidente da República, assim que deu posse ao novo governo, deu também posse como conselheiros especiais a alguns dos antigos ministros, nomeadamente ao ex-primeiro-ministro Nuno Nabian, com regalias equiparadas a primeiro-ministro, viatura, salários e tudo isso. Foi um pouco contra aquilo que o FMI pediu à Guiné de controlar os gastos da administração pública – e há quem diga que o novo governo vai ter grandes dificuldades em gerir o país porque não há dinheiro.
Portanto, a revisão constitucional é a ‘primeira prioridade’?
Acho que sim.
Exatamente no sentido de ‘despresidencializar’ o sistema.
Exatamente. Não se esqueça que em 2024 temos eleições presidenciais – até lá essa será uma das prioridades: tratar de que o regime não se torne presidencialista. De qualquer modo, em termos de prioridades houve uma grande crise na produção de caju: há fome, há uma enorme pobreza, as escolas não estão a funcionar. Eu diria que a grande preocupação será a educação, a saúde e a agricultura.
O recurso ao FMI, ao Banco Mundial, estará também no horizonte?
Tem que estar. Sem isso, o país não sobrevive. Só esta última apreciação do FMI é que foi menos positiva – mas tem feito apreciações positivas sobre o desempenho das finanças públicas. Só este último relatório é que veio dizer que os gastos da administração pública estavam a atingir montantes muito exagerados. O país tem, claro, que contar com o FMI, com o Banco Mundial e com os parceiros – como Portugal, país que tem apoiado inequivocamente a Guiné Bissau. Basta ver que, se não fosse Portugal, talvez não tivesse havido eleições.
Mas o novo quadro transmite, na sua opinião, alguma esperança aos guineenses?
Sim, sem dúvida. O povo guineense deu uma lição magistral de democracia com uma votação esmagadora num partido, para haver efetivamente estabilidade. A um partido nacional, que não está assente em nenhuma religião, o que é muito importante, interétnico, o que também é muito importante. Convém recordar que a Guiné está rodeada de países onde há constantes golpes de Estado e onde o fundamentalismo religioso está a crescer.
Que exposição tem a Guiné a esses perigos?
Creio que o povo guineense não é fundamentalista. Desse ponto de vista, será muito difícil que haja qualquer tipo de adesão popular a fundamentalismos. Ao contrário do que alguns queriam fazer passar, a população muçulmana não é radical. Daí a vitória do PAIGC. Mas evidente que o país está exposto: é o Mali, o Níger… são tragédias que estão a acontecer.
O PAIGC, é próprio, passou recentemente por períodos de forte instabilidade interna. Parece-lhe que estão reunidas condições para a normalização da sua atividade interna?
Domingos Simões Pereira não convidou nenhum dos seus opositores para o governo. Não fez aquilo que é muito comum no ocidente de trazer para o governo os opositores internos. Não deu qualquer sinal de abertura, mas creio que, em termos da política interna guineense, é um momento de estabilidade.
Não aplacou as possíveis dissensões internas.
Creio que não. A grande preocupação do partido foi ter outros partidos no governo por causa da questão da revisão constitucional. E desse ponto de vista foi muito bem sucedido.