A extrema-direita já tinha avisado sem margem para grandes dúvidas: se o primeiro-ministro Michel Barnier recorresse ao artigo 49.3 da Constituição para ultrapassar qualquer reserva da Assembleia Nacional face aos temas centrais do Orçamento do Estado, deixaria de poder contar com o seu apoio. O tema era, no caso prático, o orçamento para a Segurança Social, matéria onde o Rassemblement National (RN), de Marine Le Pen e Jordan Bardella, gosta pouco de ver o Estado a gastar em excesso.
Barnier arriscou e perdeu – a não ser, evidentemente, que o tivesse feito de propósito face à evidência de que não tem forma de governar com um mínimo de independência face à ‘balbúrdia’ que é uma Assembleia Nacional tripartida. Por razões opostas, a esquerda reunida na Nova Frente Popular já anunciou que avançará com uma moção de censura – e o mesmo fará a extrema-direita. Para que não haja qualquer dúvida sobre o desfecho da votação das moções, a direção do RN já disse que votará favoravelmente a proposta da esquerda – o que torna o governo de Barnier inviável.
A Nova Frente Popular não funciona em bloco no parlamento – fê-lo apenas durante a campanha eleitoral – pelo que havia dúvidas sobre como iria votar o Partido Socialista, de onde Emmanuel Macron é oriundo. Mas essa dúvida foi rapidamente desfeita: o partido anunciou nas redes sociais que votará a favor da moção de censura ao governo Barnier. O seu líder parlamentar, Boris Vallaud, disse ver com "raiva e preocupação" o recurso ao artigo 49.3 por parte de Michel Barnier e lamenta que o primeiro-ministro considere “mais apropriado dialogar com Marine Le Pen e a União Nacional do que discutir com a esquerda", em referência ao telefonema entre o líder do RN e o primeiro-ministro na manhã de segunda-feira.
Segundo a imprensa francesa, na sequência desse telefonema, Barnier aceitou renunciar ao reembolso do pagamento de medicamentos em 2025 – mas parece não ter chegado, apesar do histórico de concessões que o antigo Comissário europeu aceitou como forma de tentar manter o apoio da RN. Seja como for, Barnier sabia de antemão o que o esperava.
A França bloqueada
Se o governo cair – e em França não há ninguém que duvide disso – o país pode vir a ficar totalmente bloqueado, ou quase. A melhor saída é o presidente encontrar alguém que aceite ser primeiro-ministro e passe pelo ‘calvário’ que Barnier passou ao longo das últimas semanas. Se durante este mês de dezembro isso acontecer, o novo governo terá de apresentar um novo Orçamento – a Assembleia terá depois 70 dias para o examinar. Se não houver um novo governo antes do fim de 2024 (o cenário mais provável), o atual governo passa ao regime de gestão corrente e remete à Assembleia um pedido especial para gerir receitas e despesas mês a mês. Na ausência de um orçamento até o final do ano, o governo pode pedir ao parlamento que cobre os impostos e gerir os gastos dentro dos limites do ano anterior, usando o artigo 45 da Lei Orgânica das Leis Financeiras (LOLF).
É o artigo 47 da Constituição em ação. Se a Assembleia rejeitar o pedido, a França não terá um Orçamento. E também não terá um governo – o que obrigará o país a recorrer a uma ‘saída’ inédita: o artigo 16 da Constituição atribui poderes especiais de governação ao presidente em exercício. Ou seja: Emmanuel Macron pode ser o próximo presidente-primeiro-ministro de França, podendo gerir o Orçamento – ou mais propriamente a entrada e saída de dinheiro – sem ter de passar pela Assembleia Nacional.
Como é costume, o mercado não demorou a reagir: a incerteza política está a alimentar a desconfiança dos investidores – principalmente os externos ao país – com as taxas de juros sobre o Estado francês a subirem para níveis semelhantes aos que paga a dívida da Grécia. Na semana passada, quarta-feira, 27 de novembro, quando a crise política já parecia incontornável, o mais importante índice da bolsa francesa, o CAC40, contraiu 1,4% em apenas uma sessão. De então para cá, tem recuperado, mas a curva apresentada ao cabo de três dias úteis revela grande instabilidade.