A Provedora de Justiça teme pelo sucesso do processo de extinção do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) e critica o facto de “uma reforma tão profunda e de tão amplo alcance” não ter sido precedida de um debate público alargado. Maria Lúcia Amaral defende que a concretização da decisão política “nunca poderia ser feita de um dia para o outro” e deixa alertas para o período de transição até que a Agência para a Integração, Migrações e Asilo, I.P. (AIMA), a nova entidade que sucede ao SEF, possa finalmente iniciar a sua atividade.
As preocupações da Provedora de Justiça constam de um relatório sobre a atividade recente e o processo de extinção do SEF, ontem publicado, onde Maria Lúcia Amaral recomenda a fixação do número de recursos humanos a afetar aos serviços que sucedem nas funções do SEF em termos adequados ao volume de processos pendentes e previsíveis, bem como a adoção de estratégia para fazer face ao número de pendências de pedidos de Autorização de Residência (AR), designadamente para encurtamento dos prazos de resposta.
Avisa aqui que, em 2022, acentuou-se a tendência que se vinha verificando desde 2020, para o aumento do prazo de validação/aceitação de Manifestações de Interesse (MI) para concessão de AR. Assim, diz, enquanto no ano de 2020 o prazo terá sido de cerca de oito meses, em 2022 já ultrapassava os dois anos. Segundo o relatório, a média mensal de validações documentais (aceitações) era de cerca de 2.500, ao passo que a média de MI apresentadas foi de cerca de 18.000. O que significa que, ao longo desse ano, a média de crescimento do passivo terá sido superior a 15.000 por mês. Segundo o relatório, quase 300.000 manifestações de interesse para obtenção de AR em Portugal estavam pendentes no SEF em janeiro deste ano.
“A concretização da decisão política de extinção do SEF nunca poderia ser feita de um dia para o outro, pois pressupõe a articulação de várias áreas governativas e exige que sejam salvaguardadas as carreiras e direitos dos inspetores e demais trabalhadores do SEF. Ainda assim, causa perplexidade toda a incerteza e morosidade que envolveu o processo de extinção do SEF”, assinala a Provedora de Justiça no relatório que foi finalizado já após a publicação, em junho de 2023, da legislação que procedeu à criação da AIMA, a nova entidade que sucede ao SEF nas suas competências administrativas em matéria de migração e asilo, e cuja atividade se iniciará a 29 de outubro de 2023.
Para Maria Lúcia Amaral “não se pode deixar de registar o facto de uma reforma tão profunda e de tão amplo alcance não ter sido precedida de um debate público alargado”, sustentando que a decisão foi anunciada sem serem conhecidos estudos ou relatórios a demonstrar a mais-valia da repartição das funções de controlo das fronteiras e de investigação criminal pela GNR, PSP e PJ. “Ignora-se, pois, a ponderação efetuada entre os eventuais benefícios — seja da perspetiva da segurança interna, seja na ótica da eficácia da investigação criminal — e os inevitáveis riscos (perda de know-how, dificuldades de coordenação entre forças de segurança distintas, entre outros) dessa opção”, defende.
O documento contém alertas e recomendações, desde logo para aquilo que pode e deve ser feito, de imediato, durante o período de transição já em curso, em que, frisa, “se impõe uma estreita articulação entre a Direção Nacional do SEF e o Conselho Diretivo da AIMA”, dando conta de que “essa articulação é fundamental para evitar uma quebra na continuidade do serviço público”.
A Provedoria de Justiça chama a atenção para que a criação de uma nova entidade “não resolve por si mesma as principais deficiências que se pôde detetar na atividade do SEF”. Pelo contrário, deixa o aviso: “é expectável que, na ausência de medidas estruturais, o número de pendências continue a aumentar durante o período de transição e mesmo para além dele, já no contexto do funcionamento da AIMA”.
Críticas à morosidade do processo
Sobre a morosidade do processo de extinção do SEF, é recordado no relatório da Provedoria de Justiça que inicialmente, o legislador tinha previsto que a nova entidade seria criada em janeiro de 2022, plano que logo foi adiado para maio desse ano. O certo é que só em abril de 2023 foi aprovada a legislação necessária à concretização do que havia sido decidido dois anos antes (em abril de 2021). A tudo isso acresce, realça Maria Lúcia Amaral, que, mesmo após a publicação do diploma, em junho de 2023, as suas disposições não entraram logo em vigor. “Tal significa que, à data da publicação do presente relatório (julho de 2023), o processo de extinção do SEF ainda não se encontra plenamente concluído, apenas se tendo iniciado o período de transição até que a AIMA possa finalmente iniciar a sua atividade”, acrescenta.
A Provedora rebate ainda o argumento que esteve na base da extinção do SEF que se enquadrou numa política que teve como desígnio reconfigurar a forma como os serviços públicos lidam com o fenómeno da imigração, adotando uma abordagem mais humanista e menos burocrática, em consonância com o objetivo de atração regular e ordenada de mão-de-obra para o desempenho de funções em diferentes setores de atividade.
“Ora, desde logo, é pouco consentâneo com tal desígnio, assim enunciado, o prolongamento da sua concretização por um período que se estende para lá de dois anos”, sustenta, defendendo que a isso acresce que a incerteza gerada, designadamente quanto à data prevista para a extinção do SEF, “veio trazer constrangimentos acrescidos à já muito limitada capacidade de resposta dos serviços”.
Provedora recomenda a manutenção de agendamentos para além de 29 de outubro
“Com efeito, quando se perspetivava que a extinção viesse a acontecer até março de 2023 — o que, como é sabido, apesar de publicamente anunciado e reiterado, se não veio a confirmar —, informou-nos o SEF que já tinha deixado de fazer agendamentos para momento posterior”, revela o relatório, recomendando a manutenção de agendamentos para além de 29 de outubro de 2023, “em observância do princípio da continuidade dos serviços públicos, cabendo à AIMA assegurar os compromissos assumidos” até porque, nos termos da lei, os processos e procedimentos administrativos pendentes no SEF transitam para os serviços que sucedem nas suas atribuições. Tal implicará que, durante o período de transição, a Direção Nacional do SEF e o Conselho Diretivo da AIMA se articulem devidamente.
Alertas para o período de transição
A AIMA iniciará, previsivelmente, o seu funcionamento em finais de outubro de 2023, mas até lá a Provedora alerta para os cuidados a ter no período de transição
“Os sérios constrangimentos sentidos no funcionamento do SEF, quer no atendimento ou decisão de requerimentos, quer no contacto com os interessados, esclarecendo dúvidas e respondendo às suas necessidades — os quais se mantêm, conforme relatos chegados diariamente à Provedoria de Justiça —, impõem uma atenção muito particular no atual período de transição”, diz
Para Maria Lúcia Amaral, a afetação do pessoal do SEF a outras estruturas, a passagem ao regime de disponibilidade e a aposentação de parte do mesmo “causam preocupação sobre se as entidades que sucederão ao SEF estarão dotadas dos necessários recursos humanos para fazer face aos desafios que se lhe colocam”.
No plano procedimental, diz, mesmo sendo posteriormente eliminada parte considerável do número de MI pendentes, por via da autorização de residência para cidadãos dos Estados-membros da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (AR CPLP), os elementos disponíveis não permitem tirar conclusões definitivas sobre o impacto desta última na recuperação de pendências, até porque, não obstante a possibilidade da sua renovação, esta AR tem um prazo de validade de um ano.
“Na realidade, esta medida, que resulta de um acordo entre Estados e sendo naturalmente positiva, não pode, por si só, ser considerada como uma estratégia de médio prazo para solucionar os problemas agravados ao longo dos últimos anos”, conclui.
Segundo a Provedoria de Justiça, verifica-se, por outro lado, que as dificuldades na obtenção de vagas para agendamento se mantêm, afetando também os casos de renovação das AR, em geral. E subsistem igualmente as enormes dificuldades de contacto com o SEF para obter informações sobre o estado do processo ou outro tipo de esclarecimentos relevantes.
De igual modo, alerta-se no relatório, “os constrangimentos quanto à interoperabilidade dos sistemas perduram, sendo relatados problemas técnicos na atribuição dos números identificativos do ISS, AT e SNS a cidadãos estrangeiros”
Para Maria Lúcia Amaral “só uma atuação imediata produzirá efeito na redução da morosidade na tramitação dos procedimentos e, consequentemente, na melhoria do serviço prestado aos cidadãos estrangeiros em Portugal”.
Por outro lado, diz, sem prejuízo da eventual adoção de medidas corretivas de curto prazo, a capacidade de resposta aos migrantes não pode deixar de ser orientada por uma estratégia de médio e longo prazo.
“Tal significa que a eventual adoção, durante o período de transição, de medidas avulsas para abater o número de processos pendentes, embora possa servir para repor temporariamente o equilíbrio, não resolve o problema de fundo. Passado o seu efeito imediato, manter-se-á a tendência de agravamento do passivo resultante do desequilíbrio entre um forte aumento do número de solicitações por parte de cidadãos estrangeiros e a capacidade de resposta da Administração”, explica.
Daí a necessidade de serem definidos, diz, metas e objetivos de forma calendarizada, em geral, em termos de processamento de documentação e, em especial, no que respeita à recuperação de pendências.