Comissão Europeia e Conselho Europeu – dois órgãos que, ao contrário do Parlamento Europeu, não emanam da vontade direta dos cidadãos dos estados-membros – têm muitas vezes agendas concorrentes entre si. Em teoria, não deveria ser assim: o Conselho Europeu reúne os chefes de Estado e de governo dos 27 países da União Europeia e de lá emana a sua vontade consensual. Com algum exagero à mistura, quase podia dizer-se que o Conselho manda e a Comissão executa – mas não é bem isso que acontece.
A presidência de Ursula von der Leyen foi, neste particular, especialmente concorrencial: ultrapassou em larga escala as competências do Alto Representante para as Relações Exteriores (nas mãos do espanhol Josep Borrell) e, em menor escala, mas também com vários atritos, o presidente do Conselho Europeu (nas mãos do belga Charles Michel, agora substituído por António Costa). O ex-primeiro-ministro português pode, por isso, contar com pressões, complicações e outros desentendimentos com a alemã. Até porque Von der Leyen deu mostras de estar muito confortável com a extrema-direita que se ‘engrandeceu’ no Parlamento – o que, por maioria de razão, indica que preferiria ter de lidar com um liberal (como Michel) em vez de ter de privar com um socialista (Costa).
Seja como for – e sendo certo que a agenda de António Costa não é a sua, mas a dos chefes de Estado e de governo dos 27 – há grandes temas que o ex-primeiro-ministro português terá que ter em atenção.
Segurança interna
É evidentemente um dos principais temas da agenda política. Que passa por diversos planos – como o das imigrações, por exemplo – mas que remete primordialmente para a criação de um exército europeu. Não é a primeira vez, longe disso, que a questão está em cima da mesa – mas a verdade é que nunca foi possível avançar para um sistema comum. Desde logo por questões logísticas, mas também de comando. Mesmo assim, o principal entrave foi sempre político. E antes de avançar, os líderes europeus terão de responder a várias perguntas: querem um exército europeu enquadrado na NATO ou de facto autónomo e ao serviço dos interesses da Europa? A resposta nem é ‘não’ nem ‘sim’: é ‘será da forma que puder ser’. E a forma que pode ser é, dizem os analistas, uma força sob o comando geral da NATO, que, nessa medida, não será nunca, na verdade, autónoma e respondendo apenas aos interesses da União.
Defesa comum
Mas aquela não é única dúvida em torno da matéria. Quererá a Europa criar o exército comum ou, mais que isso, investir na indústria do armamento – exatamente para, no limite, poupar financiamento na criação de uma força comum? Os especialistas votam ‘sim’: faz sentido a Europa construir a sua autonomia também na área da defesa. Mas convém lembrar que a indústria de defesa é em primeiro lugar uma indústria e só depois de defesa. Isto é, haverá empresas a concorrer no mercado, acionistas e stakeholders a contentar, mercados a ganhar e exportações a alimentar. Tudo isso pode ser feito ‘apesar’ da NATO (basta ir aprender como se faz ali abaixo à Turquia e replicar o sistema), mas é pouco crível que os líderes europeus (mesmo aqueles que conhecem a história do General De Gaulle) tenham a coragem política de ensaiarem uma fuga às prioridades da agenda norte-americana nesta matéria. Tudo isto será por certo assunto suficientemente fraturante para colocar a União em fogo. E António Costa será um dos ‘bombeiros’ de serviço.
A Ucrânia (e a Moldávia, já agora)
A abertura de negociações entre a União Europeia e Ucrânia (e Moldávia, com o pequeno país eslavo a seguir ‘à boleia’ do seu gigante vizinho) está em cima da mesa há uma semana e todos sabem que será um debate demorado e não necessariamente consensual. Uma parte da Europa quer pressa – mas são só 11 países em 27, entre os quais Portugal – mas a outra nem por isso. Essa outra sabe que a entrada da Ucrânia vai criar fortes desequilíbrios – nomeadamente na sensível área da agricultura. A narrativa segundo a qual a entrada da Ucrânia na União promoverá a autosuficiência alimentar é tão improvável como dizer-se que a entrada da Suécia iria conferir um Volvo a cada família da União. Consensual, ou assim parece, é o facto de a Ucrânia não poder entrar na União antes do fim da guerra com a Rússia
Alargamento aos Balcãs
A abertura de negociações com a Ucrânia (e Moldávia) quase fez esquecer a fila de espera que já se formou às portas da União – e que é constituída por países dos Balcãs Ocidentais: Bósnia-Herzegovina (que só por si são três países diferentes, Sérvia, Kosovo (que nem todos os estados-membros reconhecem como país), Montenegro, Macedónia do Norte, Albânia. Entre eles estão forças que alguns estados-membros recusam como associados (a Bulgária e a Grécia têm muitas reticências) – mas também bons amigos de Vladimir Putin.
Pacto para as Migrações
Seria apenas um pequeno exagero afirmar-se que o Pacto para as Migrações é de tal forma impactante no interior da União, que é suscetível de criar uma guerra civil (se é que pode usar-se o termo para uma contenda entre países do bloco). O assunto é dos que tem suscitado maiores desentendimentos entre o norte e o sul – ou mais propriamente entre o norte e o sul e o leste em conjunto. E nada leva a crer que venha a ser diferente do que foi até aqui. Pior: o tema tem tudo para fomentar fortes desentendimentos nos próximos cinco anos – ficando tudo ainda mais difícil quando (e se) os Balcãs fizerem parte da União.
Apoio à Palestina
A relevância da União Europeia na Palestina é quase nenhuma, e por uma razão simples: a história daquela região e as suas relações com a Europa é uma das páginas mais reles da diplomacia europeia do século XX. Um acordo secreto fechado em 1916 entre a Inglaterra e a França (o acordo Sykes-Picot) preconizava que os dois países, potências administrantes, tratariam de convencer palestinianos e judeus a escolher viverem na Palestina – mas que no final seriam Inglaterra e França a manter o domínio sobre a região. Foi como vender um cavalo a dois compradores e no final não querer entregar o animal a nenhum deles. O cinismo do acordo não se ficava por aqui: preconizava ainda que, uma vez vencido o Império Otomano, como era provável que aconteceria (e aconteceu), Istambul serie entregue aos russos. Desgraçadamente, houve uma revolução na Rússia no ano seguinte e não só os novos ‘senhores’ deixaram de ter interesse em controlar a porta dos Estreitos de Dardanelos, como denunciaram o acordo, que até aí se mantinha estritamente secreto. A partir daí, os palestinianos e os judeus deixaram de ter confiança nas potências europeias – e é talvez chegada a hora de restaurar o desastre perpetrado há pouco mais de 100 anos. Com esta mania de pedir desculpa pelo passado, França e Inglaterra têm nesta área muito de que se redimir. O acordo Sykes-Picot teve ainda outra consequência atual: qualquer presidente da Turquia, seja ele quem for, sabe que terá de manter com a Rússia relações especialmente cordiais, próximas e bem ‘oleadas’ – o que explica bem a razão por que o presidente Recep Erdogan, apesar de liderar um país da NATO, mantém abertas e sem entupimentos as linhas de diálogo com Vladimir Putin.
Relações com a Arábia Saudita
A falta de tração da Europa na Palestina é a mesma falta de tração da Europa no Médio Oriente e na Península Arábica: ninguém liga nenhuma ao ‘velho’ continente a não ser para angariar turismo e para aplicar dinheiro a longo prazo (como por exemplo no futebol, que aparenta ser uma das indústrias mais perenes do globo, como bem sabem todos os CEO dos fundos soberanos de todas as petromonarquias árabes). Num contexto em que as promessas, as metas e as boas intenções das COP têm pouca apetência por mostrar-se próximas da realidade, a produção e a compra de petróleo e de gás natural continua a estar na linha da frente das preocupações e das contas das estratégias dos grandes blocos. Neste quadro, a União Europeia não é exceção.
Pacto para o Clima
Tão urgente como polémico, o pacto para o clima teve um forte impulso no período da pandemia – que também deixou a descoberto as dependências estratégicas da União Europeia. Mas tudo isso passou muito rapidamente – nomeadamente na área da energia: a Europa tornou-se independente da Rússia para se lançar feliz na dependência de outro país produtor qualquer, e até os investimentos e gasodutos e oleodutos, que estavam em cima da mesa há um par de anos, desapareceram misteriosamente da agenda. Quanto ao mais, o pacto tem repercussões diretas na economia – e num quadro de taxas de juro elevados (e que nunca mais serão as que eram há três anos), convém não fazer grandes ondas com a sustentabilidade, a economia circular e essas ‘modernices’.
Relações comerciais com a China
Pode não parecer, mas este é o grande tema da União Europeia em termos estratégicos e de futuro a médio prazo. A maioria dos analistas considera que a União continuará a ser submissa à estratégia de política externa dos Estados Unidos – o que quer dizer o bloco dos 27 continuará a tentar afastar a China da sua cercania. O que em princípio é mau por uma razão infantil: não é a estratégia dos 27 – até podia ser, mas como a motivação é seguir as indicações de Washington, nunca se vai saber se é ou não.
Relações com os BRICS
Cada presidência do Conselho da União decide escolher um país a quem decide aproximar-se. No caso de Portugal, por exemplo, a Índia foi um dos ‘felizes contemplados’. Passada a presidência, tudo fica no esquecimento, e essas relações regressam ao ponto de partida sem que nada de substancial aconteça. É pura perda de tempo e de recursos sem nenhuma mais-valia que se aproveite para o futuro. Era capaz de não ser má ideia que alguma coisa fosse alterada e que estas iniciativas deixassem de ser usadas para ‘alta-recreação’ unilateral de cada um dos países que passa seis meses a comandar. Talvez aí o Conselho Europeu tenha uma palavra a dizer e decida olhar para onde as coisas estão de facto a acontecer. Os BRICS são um dos lugares onde as coisas estão de facto a acontecer, e a Europa – que ainda não conseguiu perder os seus tiques de sobranceria, tem tudo a ganhar em aproximar-se dessa cada vez mais distinta realidade.
Relações com o Reino Unido
O território da União Europeia não vai mudar. E o das ilhas britânicas, em princípio, também não. Apesar do Brexit, os dois blocos estão condenados a entender-se, e não é apenas por razões comerciais. As reservas entre os dois lados do Canal da Mancha são históricas, mas não são inevitáveis. O facto de o Reino Unido estar prestes a deixar para trás 14 anos de experiência conservadora – que, entre outras coisas, patrocinou o Brexit, apesar de terem sido os conservadores que insistiram na adesão à CEE (por três vezes, só tendo sido aceites à terceira tentativa) – pode ser o momento certo. Que pode passar, dizem alguns analistas, pela criação (de raiz, se necessário for) de uma plataforma de entendimento que não vá tão longe quanto uma adesão, mas que seja muito mais que um mero acordo de pautas aduaneiras (ou qualquer insignificância do género). Keir Starmer, líder dos trabalhistas – que nas décadas de 1950 e 1960 eram a primeira linha contra a adesão à CEE por parte do Reino Unido – já deu mostras de estar aberto a um entendimento de largo espectro com a União e talvez conviesse não perder a oportunidade.
Um PRR para sempre
Como nada se faz sem dinheiro, as questões orçamentais são sempre um tema de forte controvérsia – e enquanto António Costa andar pela Europa, isso não deixará de ser verdade. Até porque alguns dos desafios implicam largas somas de dinheiro – a defesa comum é o exemplo mais óbvio. Uma espécie de PRR permanente seria uma solução – mas para isso seria talvez interessante que a Europa avaliasse (com o recurso à matemática e não apenas à palavra) as consequências da criação do Next Generation EU, com os Eurobonds em evidência. A matéria já está agendada: em junho de 2025, um novo quadro financeiro plurianual entra em debate.