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Escassez de engenheiros ameaça futuro das grandes obras

António Martins da Costa, presidente da PROFORUM, Associação para o Desenvolvimento de Engenharia, diz ao JE que as empresas enfrentam escassez de talento e que o número de engenheiros que sai do país não é compensado pelo dos que entram. “É preciso uma ação coordenada entre o Governo, as instituições de ensino e o setor empresarial, de forma a garantir que Portugal dispõe do talento necessário para sustentar o seu desenvolvimento económico e tecnológico”, afirma, no dia em que a PROFORUM celebra 30 anos de atividade com um congresso, no CCB.

António Martins da Costa, presidente da PROFORUM, Associação para o  Desenvolvimento de Engenharia, em entrevista ao JE a propósito do congresso da associação que hoje se realiza, no Centro Cultural de Belém (Sala Almada Negreiros), assinalando 30 anos de atividade, defende que investir nas pessoas e na formação é investir no futuro. Subordinado ao tema “A Engenharia e o Futuro”, o congresso reúne líderes empresariais, decisores públicos, academia e ordens profissionais para debater os grandes desafios e oportunidades da Engenharia em Portugal e realiza-se tendo como pano de fundo uma altura decisiva para o país.

Portugal anuncia grandes investimentos e projetos estruturais como o Novo Aeroporto de Lisboa, a Terceira Travessia do Tejo e a Linha de Alta Velocidade. Tem engenheiros para construir tudo isso?

Tem. Mas ainda não chegam. E porquê? Porque continuamos a assistir a que os bons engenheiros que formamos nas boas universidades que temos no país continuam a ser atraídos por melhores condições no estrangeiro. Parte dessa capacidade, desse talento que sai das universidades, vai imediatamente para fora, quando era preciso que ficasse aqui dentro sobretudo com este novo plano de desenvolvimento de infraestruturas de obras públicas em que precisamos deles. Temos também, devo dizer, alguns engenheiros de outros países que vêm para cá – alguns tiram os seus cursos aqui, outros vêm já formados -,  e, desde que haja equivalência correta, isso ajuda. Mas são poucos.

O que sai não equilibra com o que entra?

Não, não chega a compensar. E depois temos um problema de base: como atrair mais gente para os cursos de Engenharia.

Porque saem os engenheiros portugueses?

O primeiro problema tem a ver com salários. O salário e a fiscalidade. O salário até pode ser relativamente bom para o salário médio português – e alguns engenheiros até podem ganhar razoavelmente acima do salário médio português. Contudo, a fiscalidade que temos é uma fiscalidade altamente progressiva, e rapidamente um engenheiro está próximo do escalão máximo de IRS, quando, para esse mesmo salário, noutros países europeus, a taxa de fiscalidade é muito mais baixa. E, portanto, esse sistema acaba, portanto, por levá-los a serem atraídos para fora.

Como eu digo, o ir para fora não tem mal nenhum. Até é bom. É bom que os nossos engenheiros vão lá fora, que tenham novas experiências, que vejam novos mundos, que se articulem com outros colegas da mesma atividade, com outras experiências e outras visões, mas que depois tenham a oportunidade de voltar para aqui e transportar esse conhecimento que trouxeram lá de fora, que é o que a esmagadora maioria quer.

E que condições?

As condições de compensação salariais, fiscalidade…

Mas os salários dependem da produtividade e da competitividade das empresas e todo o país está de alguma forma preso nesse nó górdio. Agora, na fiscalidade, há coisas que podem ser feitas?

Claro.

Exemplo do que pode ser feito para atrair?

Houve um modelo muito específico, o de residente não habitual, que ajudava a trazer de volta quem tivesse estado a trabalhar no estrangeiro e que quando regressavam tinham durante, mais algum tempo, uma fiscalidade reduzida. Era uma forma de atrair o talento. E houve bastante gente que voltou nessas circunstâncias. O modelo agora é ligeiramente diferente, mas ainda existe. Não é tão incentivador como era o modelo original, mas ainda existe e ainda tem alguma capacidade de atração.

Mas, como digo, a fiscalidade é um fator absolutamente decisivo. Eu já nem falo na fiscalidade de países como, por exemplo, os Emirados Árabes Unidos, em que a fiscalidade é zero – quem vai para lá não paga e não há IRS naquele país. Não estamos a falar disso. Estamos a falar de outras realidades europeias em que para o mesmo nível salarial, aqui rapidamente se está num nível de tributação de mais de 35%, 40% e chegando aos quase 50%… Nos outros países para o mesmo nível salarial estamos a falar de quase metade dessa carga fiscal. Esse é um vetor muito importante.

Essa é a parte mais material. Não é só isso.

Então?

Há uma parte da retenção do talento aqui em Portugal que tem a ver com as oportunidades de desenvolvimento concretas. Quantas empresas há em Portugal com atividades ou projetos de ponta que consigam atrair engenheiros para irem para lá, sabendo que podem desenvolver uma carreira e o seu crescimento, o seu desenvolvimento pessoal, numa coisa que lhes dê prazer, que gostem, que foi para aquilo que estudaram. Temos muitas e boas empresas em Portugal que fazem isso, mas ainda são poucas.

Comparando com os países nórdicos, vemos que o modelo de atração de jovens engenheiros é um modelo em que há, primeiro, todo um sistema de trabalho nessas empresas muito mais aberto, permanentemente aberto, mais flexível, que dá um equilíbrio muito grande entre a vida e o trabalho, entre a família e o trabalho. Esses países, tradicionalmente, sempre protegeram muito esse equilíbrio entre família e trabalho. Isso são outros fatores que também pesam muitas vezes nas decisões. Nesses países nórdicos há modelos bastante diferentes, em que as pessoas têm uma flexibilidade que compensa, e um ambiente de trabalho em que o acesso às hierarquias e às chefias é completamente diferente. São fatores que também pesam.

Resumindo, as empresas devem olhar para os novos modelos de organização do trabalho e flexibilizar…

E fazer esse trabalho de comunicação e de liderança. Hoje em dia, quando se pede a um conjunto de jovens engenheiros – e não só – que entram nas empresas, eles estão à espera de coisas diferentes das gerações de há 30, 40 ou 50 anos. Os modelos hierárquicos funcionam de forma diferente. A comunicação entre as pessoas funciona de forma diferente. A tecnologia é algo absolutamente presente no dia a dia. Tudo o que são formas de comunicação longas já não se usam, nem estas jovens gerações as querem. Querem ter a possibilidade de ser criativos, de ser inovadores e de ser reconhecidos.

Estamos a fazer esse trabalho?

As nossas empresas estão a fazer essa transformação, mas lá fora, até pela sua dimensão, outros países europeus estão mais avançados.

Na realidade há muitas engenharias, muito diferentes entre si e a procura dos cursos no ensino superior reflete isso mesmo. Há seis cursos de Engenharia no top 10 das notas mais altas, mas também há quatro no grupo das sete notas mais baixas. Em termos do mercado de trabalho isto reflete-se ? Quais são as áreas deficitárias? 

Há. Tocou há pouco no caso, por exemplo, das engenharias civis. Tudo o que tem a ver com a construção e com as infraestruturas. É uma área que tem tido pouca atratividade para os jovens. E dos cursos em que não se vê tanta procura. Caiu um bocado “fora de moda”, digamos assim, porque os jovens que vão para Engenharia, neste momento, sentem-se muito mais atraídos para tudo o que tenha a ver com os temas de inteligência artificial, digitalização de novas tecnologias, aeroespacial… Há determinadas especialidades que estão mais na linha da frente e que atraem muito mais os jovens.

O que é que é preciso fazer?

Há um conjunto de obras públicas e de infraestruturas que têm de ser feitas — e precisamos de engenheiros civis. Precisamos também dos outros, claro, mas os civis são um bom exemplo. Os civis, os mecânicos, os eletrotécnicos… As chamadas engenharias mais clássicas, mais tradicionais, são absolutamente necessárias. É preciso fazer um trabalho que tem de começar mais cedo, praticamente no ensino secundário.

Há aquilo a que chamamos os role models. Nos filmes, livros, publicidade… há sempre figuras que se tornam modelos e que tipificam um determinado tipo de atividade: o advogado de sucesso, o financeiro de sucesso… Quando aparece alguém ligado à engenharia com sucesso, está quase sempre associado às novas tecnologias. Raramente aparece um engenheiro civil. Hoje em dia, não há nenhum filme – ou nenhum livro, que me lembre – que valorize a Engenharia como se valorizava no século XIX ou no início do século XX, quando os engenheiros estavam na linha da frente do desenvolvimento. Hoje os jovens querem ser o Zuckerberg, o Elon Musk ou alguém ligado a essas tecnologias.

Há, portanto, um trabalho que tem de começar no ensino secundário: mostrar que a Engenharia clássica é absolutamente fundamental e que, sem ela, o resto não funciona. Precisamos de estradas, automóveis, aviões, comboios, barragens… Há todo um conjunto de obras essenciais e de infraestruturas — físicas, estáticas, de mobilidade — que, obviamente, têm de ter tecnologia, mas que são importantes. Esse trabalho tem de começar cedo, no ensino secundário.

O que é que temos que fazer?

É preciso uma ação coordenada entre o Governo, as instituições de ensino e o setor empresarial, de forma a garantir que Portugal dispõe do talento necessário para sustentar o seu desenvolvimento económico e tecnológico. É fundamental criar condições para atrair e reter talento. Precisamos de inspirar os jovens a escolher a engenharia e as ciências aplicadas como caminhos de futuro. Isso exige visão, cooperação e políticas que valorizem verdadeiramente o capital humano.

Onde é que o Estado entra?

Entra ajudando a regular e a legislar esses modelos de funcionamento e também a garantir, muitas vezes, financiamento, porque há fundos que existem, quer a nível nacional, quer a nível europeu, para apoiar este tipo de atividades.

Uma entidade como o Banco Português de Fomento é essencial para agilizar que esses fundos cheguem, sejam alocados a atividades e as iniciativas que sejam mais interessantes do ponto de vista de benefício versus o custo que tem. Dentro do pilar de Estado há muitas agências que são essenciais para que isto aconteça.

Além da articulação entre estes três pilares, todos têm de trabalhar nesse sentido. O que é um intangível. Não se faz por decreto, não se faz por diretiva… É criar uma vontade coletiva nos jovens e no país, dizer nós queremos ter uma sociedade desenvolvida. É o que todos queremos.

Tem conhecimento que haja desemprego em alguma área da engenharia?

Não. Que seja significativo, não.

Que outros problemas identifica e que são lesivos para o sector?
Temos obras para fazer, há dinheiro disponível, financiamento, há veículos de financiamento e, neste momento, há um obstáculo que tem de ser removido, que é a rigidez da contratação pública. O Código de Contratação pública, que ninguém nega que tem que existir e que tem que funcionar e que tem que haver regras, que tem de ser fiscalizado, auditado, mas, neste momento, a interpretação que lhe é dada é de tal  maneira rígida que, em primeiro lugar, tudo é guiado apenas pelo preço. O único fator determinante, praticamente, na adjudicação de trabalhos ou de obras é o preço, o que não sendo mau, muitas vezes, leva a que a qualidade fica em segundo lugar. Corre-se o risco de ter não o melhor prestador de serviços. Tem que se encontrar forma de conseguir ultrapassar isso.
 
E depois é o tempo que demora desde os pareceres prévios do Tribunal de Contas ….Uma adjudicação de uma obra pode demorar meses, às vezes anos, e se houver contestação, tem que voltar tudo à estaca zero. Se não houver, se o concurso ficar deserto, tem que voltar tudo à estaca zero.
 
Há uma série de problemas na contratação pública que pede que se reveja o próprio processo de  contratação pública.