O presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses (ASJP) rompeu o silêncio no ‘Caso Influencer”, que se tornou público a 7 de novembro e levou à demissão do primeiro-ministro depois de saber que está a ser investigado em inquérito autónomo no Ministério Público (MP) junto do Supremo de Tribunal de Justiça.
Sobre a decisão do juiz de instrução de deixar cair os crimes mais pesados como o de corrupção, Manuel Soares considera que este “limitou-se a analisar os indícios recolhidos até agora” e que “é muito cedo para pendurar o Ministério Público no pelourinho ou para o endeusar num altar”. E explica: não se sabe se o MP vai recolher mais informação relevante na investigação aos negócios do lítio, hidrogénio verde e do centro de dados de Sines, o Start Campus.
Um inquérito que levou à detenção do ex-chefe de gabinete de António Costa e do consultor e melhor amigo do chefe de Governo, Diogo Lacerda Machado, e que conta com nove arguidos, entre eles o agora ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba. O processo está a abrir fraturas no MP.
As declarações do advogado de Lacerda Machado quanto ao alerta do presidente do Supremo Tribunal de Justiça de que a corrução está instalada em Portugal também não passaram despercebidas ao presidente da ASJP: “Acho indigno da advocacia, um advogado dizer que o Presidente do Supremo tem ‘conversa de tasca’. Devia pedir desculpa”.
O caso tem estado debaixo de fogo cruzado na esfera mediática e política a propósito de erros no despacho de indiciação da Operação Influencer, o líder da ASJP afirma ter as maiores dúvidas” se é o “detalhe mais importante do caso” e alerta que “andar de lupa à procura desses erros é bom para não discutir o resto” na sequência de uma investigação que lançou o país numa crise política e numa discussão em torno da justiça.
Manuel Soares considera que a procuradora-geral da República (PGR), Lucília Gago, fez bem em sinalizar a investigação a António Costa no comunicado do caso Influencer: “Vamos imaginar que o comunicado não trazia o tal parágrafo. O inquérito contra o primeiro-ministro seguia, ninguém sabia agora, mais tarde isso ia ser inevitavelmente tornado público e toda a gente ia dizer que o Ministério Público ocultou informação importante para proteger o PS e o governo”.
Já quanto à reforma da Justiça, recorda que a ASJP tem feito o “possível e o impossível” para motivar o poder político e legislativo a abrir um debate sobre as diversas áreas da justiça onde se podem introduzir melhorias, tendo apresentado dezenas de sugestões para todas as áreas relevantes. Mas lamenta que, “tirando o Presidente da República, ninguém pareceu muito interessado”. Realça aqui que “o poder político está mais virado para medidas imediatas que dão aplauso fácil, mas que muitas vezes não resolvem nada” e que a justiça só é uma prioridade “quando lhe bate à porta”. E critica o Governo e a oposição de nunca ter dado sinais de querer abrir um processo de reflexão com vista à reforma da justiça, apesar da maioria absoluta e dinheiro como nunca teve como os 270 milhões do PRR.
A propósito do caso Influencer, é normal existirem os erros no despacho de indiciação que vão desde à troca nomes nas escutas, a números de portarias que não correspondem a projetos aí referenciados, até uma reunião na sede do PS, no Largo do Rato, em Lisboa, que nunca aconteceu nesse local? Num caso destes que levou à queda do Governo, por haver um inquérito ao primeiro-ministro no MP junto do Supremo Tribunal de Justiça (STJ), não deveria de haver maior cuidado no tratamento da informação e referências que constam do despacho de indiciação?
Não sei se é normal, mas lapsos de escrita e outros erros materiais podem sempre ocorrer. Era melhor que não acontecesse, mas, às vezes, a pressão do tempo e a dimensão do trabalho pode levar a isso. Se forem meros erros materiais, sem influência no objeto do processo, a lei permite a sua correção a todo o tempo.
Agora, que isso seja o detalhe mais importante do caso, tenho as maiores dúvidas. Andar de lupa à procura desses erros é bom para não discutir o resto.
O juiz de instrução da operação Influencer decidiu libertar todos os detidos, fazendo também cair as suspeitas de corrupção. É sinal de que não existem provas suficientes neste caso?
A intervenção do juiz de instrução, nesta fase, não visou fazer uma avaliação global da suficiência dos indícios para levar alguém a julgamento e, que se saiba, a investigação ainda continua. Isso só ocorrerá mais tarde, se o Ministério Público vier a acusar alguém.
O juiz de instrução limitou-se a analisar os indícios recolhidos até agora e as razões cautelares que levaram o Ministério Público a pedir certas medidas de coação.
O processo penal é uma sucessão de certezas provisórias. Parece que vai haver recurso da decisão do juiz de instrução. Não sabemos o que decidirá o tribunal da relação. Nem sabemos se o Ministério Público vai recolher mais informação relevante na investigação. É muito cedo para pendurar o Ministério Público no pelourinho ou para o endeusar num altar.
Como avalia o facto de as medidas de coação terem ficado aquém da promoção do MP? Há desproporção na forma como as coisas são feitas, por exemplo, o caso do autarca de Sines que esteve detido uma semana e saiu com termo de identidade e residência (TIR)?
O Ministério Público conduz o inquérito, sujeito ao dever de objetividade, e formula as conclusões que no seu juízo resultam dos indícios que recolheu. Quando pretende realizar diligências ou obter decisões que restringem direitos liberdades e garantias, precisa da autorização de um juiz. Portanto, a função do juiz de instrução é mesmo essa: verificar se no caso ocorrem os pressupostos para atender ao que lhe é pedido. Se de cada vez que um juiz não dá seguimento a uma pretensão do Ministério Público caísse um pedaço do mundo, já não havia mundo.
A procuradora-geral adjunta Maria José Fernandes questionou num artigo de opinião como foi possível chegar até aqui e os métodos de trabalho e investigação do Ministério Público. De facto, houve decisões que provocaram uma monumental crise política. Não é de questionar métodos de trabalho e investigação do MP, designadamente do Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP)?
Presumo que a procuradora que refere, que tem até especiais responsabilidades, visto integrar os serviços de inspeção que tratam da avaliação e disciplina dos magistrados, antes de escrever no jornal o que escreveu, reportou aquilo que sabe ao Conselho Superior do Ministério Público e à Procuradora-Geral da República, para ser devidamente investigado e para que os métodos de trabalho e investigação sejam melhorados.
E presumo, igualmente, que, nos muitos casos mediáticos anteriores, que também motivaram críticas ao Ministério Público, vindas, às vezes, de outros quadrantes políticos, não viu que existissem os problemas nos métodos de trabalho e investigação que agora descobriu.
A mim, o que me importa, se existem esses problemas, que desconheço porque julgo não conhecer alguém que trabalhe no DCIAP, nunca lá entrei e não sei como se coordenam as investigações, é que quem os conhece os resolva.
Em Portugal há “buscas sem utilidade”, “abuso de poder” e “meios de recolha de prova humilhantes”?
Buscas sem utilidade, se a sua inutilidade era previsível no momento em que foram pedidas pelo Ministério Público, e autorizadas pelo juiz de instrução, são erros de serviço que podem ter reflexo negativo na avaliação e classificação profissional. Abuso de poder, que eu saiba é crime. Recolha de prova humilhante, que eu saiba também, pode gerar responsabilidade disciplinar. Vou, portanto, voltar a presumir que a procuradora que escreveu isso no jornal só descobriu essas falhas graves neste caso e que já as participou a quem devia.
Como é que viu a declaração do primeiro-ministro quando os arguidos do processo ainda estavam a ser ouvidos? Viu interferência na Justiça e no trabalho do Ministério Público e do juiz de instrução da operação Influencer?
Não vou qualificar a intenção do primeiro-ministro. Quando há pontos de interceção entre a política e a investigação criminal da natureza e com os efeitos graves desta, é normal que apareçam manifestações de descontentamento e até pressões. Caiu o governo e vamos para eleições antecipadas. Não é coisa pouca. O Ministério Público tem de fazer o seu trabalho e aguentar a pressão. E os tribunais, quando tiverem de intervir, também.
O primeiro-ministro tinha condições para se manter em funções nestas circunstâncias ou famoso parágrafo com a referência ao inquérito ao primeiro-ministro que constou do comunicado da PGR ajudou a precipitar a sua demissão? Esse parágrafo tinha de constar do comunicado?
A Procuradora-Geral da República não pode ser “presa por ter cão e presa por não ter”. Quando não informa, é porque não comunica; quando informa é porque comunica demais. Vamos imaginar que o comunicado não trazia o tal parágrafo. O inquérito contra o primeiro-ministro seguia, ninguém sabia agora, mais tarde isso ia ser inevitavelmente tornado público e toda a gente ia dizer que o Ministério Público ocultou informação importante para proteger o PS e o governo. Era isso que devia ter acontecido?
O comunicado, quanto a mim, informou o que era necessário e relevante, tendo em conta a gravidade e excecionalidade da situação. Se o Presidente da República foi informado pela Procuradora-Geral da República, acho muito bem porque lhe cabe garantir o normal funcionamento das instituições e o facto era importante para esse efeito. O primeiro–ministro, apesar de isso não ser legalmente obrigatório, invocou razões de consciência e demitiu-se. E a culpa é da Procuradora-Geral da República? Era suposto ela fazer o quê? Escondia a informação ou mandava arquivar o inquérito antes de se completar a investigação das suspeitas?
Devia ter havido mais cuidado da parte da Procuradoria-Geral da República, com a informação que deu ou não, face à informação vaga que constava do parágrafo?
Voltamos ao mesmo. Agora já não é porque estava lá o parágrafo; é porque o parágrafo dizia pouco. A Procuradora-Geral da República não pode dar informação detalhada sobre os factos que levaram à abertura do inquérito – que aliás, é obrigatória – nem entrar nos detalhes da investigação e dos factos.
O problema, penso eu, é outro. Aquilo que já ouvi, que o Ministério Público só poderia abrir um inquérito contra o primeiro-ministro se soubesse que no final ia recolher prova para o acusar, não tem qualquer sentido. Isso não existe. O Ministério Público, desde que haja uma informação suspeita plausível, está obrigado a abrir um inquérito para investigar se a suspeita se confirma ou não. É óbvio que antes de investigar não sabe o que vai encontrar e a que conclusão vai chegar no fim.
Seria útil a própria procuradora-geral vir pessoalmente falar sobre o assunto?
Acho que não.
O presidente do STJ, Henrique Araújo, denunciou recentemente a "corrupção instalada" em Portugal. Partilha deste alerta e que falta de vontade do poder político em fazer do setor judicial uma prioridade?
No nosso país, “a quente” não se fazem reformas, porque não se pode; “a frio” também não, porque não se quer. É evidente que a justiça só é uma prioridade para o poder político quando lhe bate à porta. O Governo tinha maioria absoluta, uma legislatura inteira à frente, dinheiro como nunca teve, pois só do PRR tinha para a justiça aí uns 270 milhões, tinha toda a abertura das profissões da justiça para abrir um processo de reflexão com vista à reforma da justiça. Dos juízes teve até um trabalho compilado em livro que apresentava mais de 209 propostas para todos os sectores relevantes. Nunca deu sinais de o querer fazer. Nem o Governo nem a oposição, aliás.
Se, agora, por causa deste caso, der a pressa a alguém, seja da direita seja da esquerda, para fazer a tal reforma da justiça, é de ficar desconfiado. Vamos ver que propostas aparecem e se aparecem.
O advogado de Diogo Lacerda Machado disse que as declarações do presidente do STJ “são declarações de tasca ou de café", defendendo que a única coisa que temos são estatísticas relativas à perceção de corrupção. Como vê a forma como Manuel Magalhães e Silva se dirigiu ao presidente do Supremo? A AO devia atuar? E o argumento que só existem estatísticas relativas à perceção?
Acho indigno da advocacia, como eu a vejo, um advogado dizer, com ar de conversa de salão, que o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça tem “conversa de tasca”. Devia pedir desculpa.
No mais, acho que não devo comentar a substância das declarações que os advogados dos arguidos prestam publicamente sobre o caso. São pagos para defender os clientes, têm acesso fácil aos microfones e câmaras de televisão e dizem aquilo que consideram melhor defender os interesses que representam. Eu dou sempre esse desconto.
Devia de haver mudanças nos megaprocessos e nas leis processuais? Quais as mudanças que preconiza na justiça?
Corremos nos últimos meses todas as capelinhas com um trabalho debaixo do braço que demorou mais um ano a fazer, chamado “Agenda da Reforma da Justiça – uma Reflexão Aberta e Alargada do Judiciário”, que está publicado em livro. Apresentámos esse trabalho num Congresso à frente do Presidente da República e da Ministra da Justiça. Reunimos com os Grupos Parlamentares. Fizemos uma sessão de divulgação e debate na Assembleia da República. Enfim, fizemos o possível e o impossível para motivar o poder político e legislativo a abrir um debate sobre as diversas áreas da justiça onde se podem introduzir melhorias. Apresentámos dezenas de sugestões para todas as áreas relevantes. Toda a gente apreciou muito, mas, tirando o Presidente da República, ninguém pareceu muito interessado. Fazer reformas cujos benefícios só aparecem anos depois implica muito trabalho, risco, contestação e chatices. O poder político está mais virado para medidas imediatas que dão aplauso fácil, mas que muitas vezes não resolvem nada.
Da parte dos juízes, quando acharem que nós sabemos alguma coisa sobre o sistema de justiça e quando quiserem falar de reformas, estamos disponíveis. E temos o trabalho de casa feito há muito tempo.