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Disrupções digitais em família

Enquanto somos arrebatados por sedutoras ofertas de imersão virtual, de delegação de tarefas à inteligência artificial e de satisfação instantânea de múltiplas necessidades, persiste um dever de reflexão sobre os efeitos profundos de tais disrupções. São disrupções pela intensidade e velocidade avassaladoras com que destabilizam a continuidade de hábitos de comunicação, afectividade, aprendizagem, trabalho e contemplação cultural.

A família é a instância mais apropriada para analisá-las, pois permite observar no concreto mudanças de comportamento, tensões interpessoais e o surgimento de vulnerabilidades intelectuais e emocionais.

Ao desbravar novos terrenos, o Homem carrega a responsabilidade de harmonizar o que recebe de herança cultural com a sua incessante vontade de inovação, os seja, a permanência e a mudança. Nesse sentido, impõe-se avaliar as potencialidades da era digital, antecipando em que medida influenciam a convivência familiar, a formação da identidade pessoal, os hábitos intelectuais e, por conseguinte, a consciência cívica, as atitudes políticas, o capital humano e a realização da sociedade no seu todo.

A partir do âmbito familiar, são assinaláveis três tendências disruptivas: o acesso prematuro e desregrado a estímulos digitais durante toda a infância; a desmoralização e procrastinação induzidas pelas redes sociais; e a estandardização cultural – de valores, comportamentos e necessidades – incutida por ambientes imersivos fabricados pelos monopolistas do entretenimento globalizado.


Ciclo de estímulos e tédio na infância
A família é um espaço relacional de continuidade que se distingue pela natureza incondicional dos compromissos e pela busca de realização do indivíduo para além de si mesmo, especialmente através da missão de cuidar, educar e valorizar a própria progenitura. Abaladas por um ritmo de vida frenético e menor disponibilidade para cuidar dos filhos com a tranquilidade que seria desejável, as famílias delegam cada vez mais as suas funções primordiais a terceiros, colmatando os restantes momentos livres da «criança-rei» com a impiedosa exposição a vários ecrãs.

Por estarem habituadas a acolher acriticamente as orientações do sistema de ensino e as tendências da maioria, muitas famílias concedem aos filhos todos os métodos e hábitos que observam nos filhos dos outros e esquivam-se de ir contra a corrente. Recorde-se como a fase dos confinamentos serviu para ver nos recursos digitais uma panaceia para todas as necessidades educativas, transformando as crianças em cobaias de uma experiência atrofiante e solitária.

Contudo, uma das melhores formas de avaliar a qualidade de uma boa educação é identificando as finalidades que ela procura servir. Uma educação centrada no perfeito domínio dos recursos digitais não procura favorecer o pensamento crítico, a argumentação, a memorização, os hábitos de disciplina, nem o desenvolvimento harmonioso entre o corpo e a mente. Esta febre dos meios digitais tem como exclusiva finalidade a mera utilidade nas circunstâncias específicas em que vivemos.

Mas se é verdade que existe uma forte pressão pedagógica em favor dos encantos multimédia, também existem culpas imputáveis às famílias. Ironicamente, numa época em que os filhos são exageradamente protegidos das frustrações naturais da vida, os pais descuram os profundos efeitos desta contínua alienação que molda a personalidade dos filhos a cada minuto que passa. Demitem-se de dedicar tempo à transmissão das pequenas lições, permitindo que absorvam linguagem, valores e comportamentos através da exposição a uma infinidade de conteúdos duvidosos.

O pior fruto que os pais irão colher será a impertinência dos filhos, por consentirem uma dinâmica familiar de negociação igualitária e alimentarem um ciclo de estímulos efémeros e frustração em fases determinantes do desenvolvimento do ser.

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