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Concurso de 800 milhões para novos comboios da CP em risco de descarrilar

O “sonho” do ex-ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos de comprar 117 novos comboios para a CP, obrigandoos concorrentes a fabricarem-no em Portugal, enfrenta vários percalços na reta final. Não só pode ser contestado nas instâncias europeias por conter cláusulas consideradas ilegais à luz das regras comunitárias, como tem candidatos que entregaram propostas que alegadamente violam os parâmetros do caderno de encargos.

É um concurso público de mais de 819 milhões de euros em risco de descarrilar. O “sonho” do ex-ministro das Infraestruturas Pedro Nuno Santos de comprar 117 novos comboios para e – ao mesmo tempo – obrigar os concorrentes a fabricarem-no em Portugal enfrenta vários perigos à entrada da reta final da escolha. Não só pode ser contestado nas instâncias europeias por conter cláusulas consideradas ilegais à luz das regras comunitárias, como tem candidatos na corrida que entregaram propostas que alegadamente poderão violar os parâmetros do caderno de encargos. E a própria CP não parece ajudar, tendo aparentemente ignorado o critério do fabrico em Portugal, ao dar a mesma nota nesse capítulo a concorrentes que – segundo especialistas ouvidos pelo JE – não parecem estar dispostos a mais do que a montar em Portugal peças em grande medida já pré-fabricadas no exterior.

Comecemos por esta última questão, a mais polémica politicamente. 

O concurso da CP para o fornecimento dos 117 comboios contém, de facto, uma bonificação de 15 pontos (em 100) para a componente de fabrico em Portugal. Segundo apurou o Jornal Económico, a comissão de avaliação da CP deu a mesma nota, a máxima, às três concorrentes em disputa pelo contrato: a que lidera o concurso – o consórcio entre os franceses da Alstom e a DST, os suíços da Stadler e os espanhóis da CAF. Mas nem todos apresentaram propostas iguais. 

Logo a começar, a percentagem de montagem dos comboios em Portugal é diferente: se a Alstom/DST e a Stadler garantem que vão fazer a “montagem e ensaios” dos comboios a 100% em território nacional, a CAF compromete-se com 77,4% de “incorporação de recursos nacionais”. Mas todos têm a mesma nota nos parâmetros de “portugalização” do fabrico.

Mais séria é a discrepância de horas-homem que cada concorrente atribui ao fabrico de cada unidade, conhecidas no jargão do concurso como “UME Rede Geral”.

Os suíços da Stadler, que se comprometem a montar 100% dos comboios em Portugal, inscrevem a concurso a necessidade de 16.270 horas para montar cada unidade automotora. Isto inclui 5.243 horas-homem para montagem de “tubagens e cablagens nas caixas” (ou seja, no habitáculo das carruagens), ou 2.260 horas-homem para “a montagem de interiores”.

A estimativa total de horas-homem no candidato suíço é cinco vezes superior às 3.227 horas-homem que a Alstom estima na sua proposta. Por exemplo, no capítulo da “montagem de cablagens e tubagens”, a Alstom prevê “gastar” apenas 84 horas por unidade.

Para o especialista em transportes ferroviários e administrador do portal Portugalferroviario.net, João Cunha, o número apresentado pela Alstom é altamente improvável”, para não dizer impossível”, como referiu ao Jornal Económico outro especialista no sector que pediu para não ser identificado. 

“Na questão das três mil horas devo dizer que é altamente improvável que se possa fazer um comboio. No limite até temos a Alstom a projetar uma fábrica toda automática, e se calhar até é possível, mas é altamente remoto. As empresas estão, com certeza, a falar em âmbitos distintos, se calhar a Stadler [com as 16 mil horas por unidade] está a contar com as atividades de metalomecânica, as que exigem mais tempo e pessoas”, disse ao JE João Cunha. 

Isso levanta outra possibilidade, suportada pelo mesmo especialista, a de que a Alstom esteja a pensar importar módulos já em adiantada fase de conclusão da sua fábrica em Barcelona e a contar apenas com a montagem final em Portugal.

“Sinceramente, acho que a tempo desse concurso ninguém vai montar uma fábrica do princípio ao fim com metalomecânica, com capacidade para fazer perfis metálicos”, sublinha o especialista.

Esta possibilidade de a Alstom equacionar apenas a montagem final em Portugal choca com, pelo menos, várias declarações públicas.

As primeiras pertencem a Pedro Nuno Santos e o seu sucessor nas infra-estruturas, João Galamba, quando garantiram que o concurso terminaria com pelo menos uma fábrica nova em Portugal, com criação de centenas de empregos, etc.

A outra é uma declaração da própria Alstom quando, em janeiro, garantiu à agência Lusa que os comboios seriam totalmente fabricados em Portugal.

“Estamos decididos a apoiar a transferência de tecnologia para o país, para que seja possível voltar a fabricar comboios em Portugal. Juntamente com a parceria com o Grupo DST, a proposta da Alstom é a única com ADN português completo: comboios para Portugal, totalmente fabricados em Portugal”, destacou a Alstom, na mesma resposta enviada à agência de notícias nacional.

Em si mesmo, esta aparente mudança de estratégia não contraria o concurso lançado pela CP, que fala em “construção/montagem” em Portugal. O problema está no facto de a comissão da CP que analisou as propostas dar o mesmo valor – a pontuação máxima – às três candidatas, quer tenham 100% ou 77% de “construção/montagem” em Portugal ou quer construam integralmente ou importem de outras fábricas suas espalhadas pela Europa.

O Jornal Económico questionou a CP sobre esta decisão, e sobre a razão de o ter feito, e ainda aguarda as resposta, que serão incluídas neste trabalho se e quando a empresa as enviar.

Também a Alstom foi contactada para explicar as horas-homem inscritas na sua proposta, mas a empresa, genericamente, tem-se remetido ao silêncio, afirmando que não se pronuncia com o concurso a decorrer. A Stadler fez o mesmo.

O especialista em contratação público Pedro Telles, ouvido pelo Jornal Económico, tem uma teoria para esta uniformização da pontuação dada aos concorrentes: receios quanto a litigância futura.

“A CP deu a pontuação máxima a todas [no capítulo da portugalização]. O que é que isso nos diz? Diz-nos duas coisas: aquilo que já tinha escrito que era provável que o júri iria fazer isso por uma questão de reduzir a probabilidade de isto de parar os tribunais. ou este factor em concreto ir parar aos tribunais. O segundo ponto é que, do ponto de vista da entidade contratante, eles não têm interesse nenhum na fábrica. O que a decisão do júri demonstra é que, para a CP, é irrelevante se os comboios são feitos em Portugal, em Espanha, no Canadá ou o que quer que seja”, sublinha Pedro Telles.

Propostas que violam o caderno de encargos

Outra questão que pode fazer “descarrilar” o concurso prende-se com a alegada violação de parâmetros do caderno de encargos.

No caderno de encargos do concurso, o artigo 3º, nº 4 da parte II-B estabelece o peso máximo por eixo de um bogie na situação de carga normal. Um bogie é o elemento por baixo de um vagão ou carruagem constituído por um sistema de amortecimento e por um conjunto de dois ou três eixos com rodas, que liga os vagões ao carris.

Voltando ao caderno de encargos, este especifica que o peso máximo por bogie em carga normal tem de ser inferior a 18 toneladas (na sobrecarga tem de ser inferior a 22,5 toneladas). Mas a CP aceitou a proposta entregue pela Alston, que inclui uma tonelagem por eixo em carga normal de 18,4 toneladas, ou seja que viola em 400 quilos os parâmetros caderno. Estas diferenças não constituem por si grandes preocupações quanto a segurança, mas são passíveis de exclusão do concurso por incumprimento das regras. Para o caso em apreço, podem levar a que alguma das outras concorrentes contestem o processo.

Sobre este assunto a Alstom respondeu ao Jornal Económico, afirmando genericamente que a empresa “compromete-se expressamente a cumprir todas as condições dos documentos do concurso”. No entanto, “uma vez que o processo está em curso, todos os pormenores permanecem confidenciais e não podemos divulgar quaisquer outras informações”, conclui. Também sobre este assunto a CP ainda não respondeu às questões do Jornal Económico.