“Foi um momento muito infeliz”, o do Presidente da República, quando decidiu levantar a questão do dever de reparação que eventualmente recai sobre a República portuguesa em relação aos diversos países da lusofonia que foram criados na sequência da descolonização. É esse, pelo menos, o sentimento do economista João Duque, que é definitivo num ponto: “qualquer reparação financeira é totalmente impossível, não há como fazer uma conta sobre a matéria”. “Sim, é impossível”, reforça o embaixador Francisco Seixas da Costa. O alerta dos especialistas surge numa altura em que o novo Governo, liderado pelo primeiro-ministro Luís Montenegro, descarta reparação histórica por colonialismo ao sinalizar não haver planos para um processo de reparação histórica pelas ações durante o período colonial.
Matéria diferente, realçam o economista e o embaixador, é uma eventual repatriação de património trazido das ex-colónias e que ande a ‘abrilhantar’ museus, fundações ou outros organismos idênticos”. Sobre essa matéria, Seixas da Costa recorda que “o assunto faz parte da agenda do debate internacional e já não é novo” – sendo o episódio mais ‘célebre’ aquele que envolve o acervo do Museu Britânico, pejado de peças vindas do exterior, principalmente do Egipto.
“Também acho estranho que um túmulo do Tutancamon”, se se der o caso de essa ser uma das peças ‘espoliadas’, “esteja em Londres”, desabafa João Duque – e “até pode fazer sentido que regresse ao lugar original”, mas tudo o que não sejam objetos materialmente identificáveis “não faz o mais pequeno sentido”. Como também não faria sentido, exemplifica, “que Portugal fosse a Itália pedir uma indemnização pela ocupação romana ou a França pelas invasões”. “Houve uma pilhagem”, admite, e uma coisa é “devolver esse património”; outra coisa bem diferente é alguém decidir fazer contas sobre o que valeu, a preços constantes, a presença portuguesa nas ex-colónias.
O economista chama ainda a atenção para o precedente que iria criar-se se a ‘ideia’ de Marcelo Rebelo de Sousa fosse por diante: “O Brasil iria ressarcir os países africanos que contribuíram com escravos para a produção brasileira” – ou seriam também os portugueses a ter que pagar esse ‘item’?
Para Seixas da Costa, é preciso desde logo perceber-se o que queria dizer o Presidente da República: “trata-se de uma reparação moral, um pedido de desculpa? A repatriação de bens que se encontrem em Portugal”. Se for isso, nada contra – quanto ao mais, não faz sentido. Até porque, recorda, “não há um consenso internacional sobre o assunto e a sensação que tenho é que não vai haver nunca”.
E depois há a questão do tempo, que tornar tudo impossível. João Duque admite como realizável, por exemplo, a conta que venha a determinar “qual é o impacto financeiro da invasão da Ucrânia por parte da Rússia, não é muito difícil”, mesmo que á equação tenha que ser acrescentado o custo do material de guerra que foi ‘atirado’ para o Donbass. Mas mais nada que isso.
Neste contexto, houve alguma surpresa com as palavras do ministro das Relações Exteriores do Brasil, que defendeu, a propósito das declarações do Presidente português sobre os erros do passado colonial, "uma política de reparação" como o seu país já tem em relação à população brasileira afrodescendente.
Em entrevista à Lusa Mauro Vieira ressalvou que não lhe compete comentar as declarações de um chefe de Estado, mas lembrou, a propósito, que o Brasil tem "uma política de reparação" para com a “população brasileira de afrodescendentes", que representam mais de 50% da população brasileira. "Só posso dizer que o Brasil internamente tem uma política de reparação para a população brasileira de afrodescendentes. Nós temos políticas afirmativas que apoiam nas mais diversas circunstâncias". Mauro Vieira referiu, no entanto que as declarações de Marcelo Rebelo de Sousa são uma questão de “política interna portuguesa” e que não pode nem deve comentar as declarações de “um chefe de Estado”.
Ainda segundo a Lusa, Anielle Franco, ministra brasileira da Igualdade Racial, já tinha pedido “ações concretas” por parte de Portugal na sequência da “importante e contundente” afirmação do chefe de Estado português, sugerindo o pagamento de reparações por crimes da era colonial. “É realmente muito importante e contundente essa declaração”, afirmou Anielle Franco ao portal brasileiro G1, citadas pela Lusa.
Colónias: Governo nega qualquer processo de reparação
Em comunicado divulgado no sábado o Governo afirmou que “não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de ações específicas com o propósito” de reparação pelo passado colonial português e defendeu que se pautará “pela mesma linha” de executivos anteriores.
“A propósito da questão da reparação a esses Estados e aos seus povos pelo passado colonial do Estado português, importa sublinhar que o Governo atual se pauta pela mesma linha dos Governos anteriores. Não esteve e não está em causa nenhum processo ou programa de ações específicas com esse propósito”, refere o comunicado.
Também na sexta-feira, o Presidente da República defendeu que Portugal deve liderar o processo de assumir e reparar as consequências do período do colonialismo e sugeriu como exemplo o perdão de dívidas, cooperação e financiamento, que já vêm sendo estabelecidas, disse.
As reparações por guerras e invasões são um tema antigo
As reparações por guerras e invasões são um tema antigo, comummente abordado pelo lado dos vencedores. Mas terá sido já no século XX que as nações envolvidas nos conflitos tentaram estabelecer o conceito de ‘dever de reparação’ que pudesse servir de regra como forma de ‘castigo’ pela cuspa de ter iniciado um conflito.
Segundo o Tratado de Versalhes (de 1919), a Alemanha concordou em pagar reparações de 132 mil milhões de marcos de ouro à Tríplice Entente (Reino Unido, França e Rússia – esta última saiu da guerra depois da revolução de outubro de 1917). A Bulgária pagou compensações de 2.250 milhões de francos de ouro à Entente, segundo o Tratado de Neuilly-sur-Seine. A acreditar em alguns historiadores, o peso das compensações impostas pela Entante foram a causa da disposição dos alemães para regressarem aos campos de batalha em 1939. É certo que o Partido Nacional Socialista (nazi) usava o argumento (a que acrescentava o judaísmo como fonte da devassa dos ativos nacionais) como forma de aliciar a população a aderir às suas ideias. Sendo difícil de inferir se o argumento foi suficiente para algum alemão aderir ao nazismo, é indesmentível que o assunto pesou de facto na criação da perceção de que a Europa (e os Estados Unidos) estavam a vingar-se dos germânicos – e não lhe perdoariam a força que a velha Prússia tinha sabido imprimir a uma parte importante do antigo Sacro Império Romano-Germânico.
Após a Segunda Guerra Mundial, de acordo com a Conferência de Potsdam, (agosto de 1945), a Alemanha teve que pagar aos aliados 20 mil milhões de dólares, principalmente em máquinas e fábricas. Nesse contexto, um grande número de fábricas civis foi desmontada para ser transportada para França e para o Reino Unido. Também a Itália, por via dos Tratados de Paz de Paris (1947), concordou em pagar reparações de 125 milhões de dólares à Jugoslávia, 105 milhões à Grécia, 100 milhões à União Soviética, 25 milhões à Etiópia e 5 milhões à Albânia. Finlândia, Hungria, Roménia e Bulgária também tiveram de pagar reparações aos vencedores. Assim como o Japão.
Mais recentemente, e após a Guerra do Golfo, o Iraque aceitou a Resolução 687, emitida pelo Conselho de Segurança da ONU, declarando que o país era financeiramente responsável pelos danos causados na invasão do Kuwait.