As taxas de execução da receita e da despesa dos municípios portugueses mantêm situações de sobreorçamentação, com desvios significativos, em rubricas específicas, sobressaindo os desvios na receita de capital, designadamente quando às transferências de fundos europeus e, no lado da despesa, as aquisições de bens de capital e as aquisições de bens e serviços. O alerta consta de estudo do Conselho das Finanças Públicas (CFP), onde se destacam os desvios na receita de capital, designadamente quando às transferências de fundos europeus. Entre o previsto e o executado, o desvio somou 910 milhões de euros em 2022.
“Os dados apurados permitem confirmar que, e apesar de melhorias observadas desde 2015, as taxas de execução da receita e da despesa dos municípios mantêm situações de sobreorçamentação, com desvios significativos, em rubricas específicas. Em particular, sobressaem os desvios na receita de capital, designadamente quando às transferências de fundos europeus e, no lado, da despesa, as aquisições de bens de capital e as aquisições de bens e serviços”, conclui o estudo “Previsões orçamentais dos municípios em contabilidade pública”, da autoria de Rui Dias, analista do CFP.
O estudo recorda que no relatório publicado pelo CFP, relativo à evolução orçamental da Administração Local (AL) em 2022, constatou-se a existência de “desvios significativos” entre o somatório das previsões anuais da receita e despesa dos orçamentos municipais em contabilidade pública e a sua execução. Uma evolução que levou à investigação das causas destes desvios e motivou a elaboração da presente publicação ocasional.
Ainda assim, de acordo com este estudo, nos anos mais recentes, os desvios nos orçamentos municipais têm sido maiores do lado da despesa efetiva do que da receita efetiva, “o que tem permitido que o subsector da Administração Local tenha vindo a apresentar um saldo orçamental positivo em termos de execução (413M€ em 2022), o que contrasta com o défice em contabilidade pública subjacente aos orçamentos municipais (-2,1 mil M€)”.
Segundo o autor do estudo, para esta esta situação contribui a necessidade de “acomodar volumes significativos” de compromissos assumidos anteriormente, conjugada com “o respeito pelo equilíbrio global dos Orçamentos”.
Em 2022, avança o investigador do CFP, “a taxa de execução da despesa municipal foi de 76,8%”. Ou seja, as autarquias inscreveram 13,7 mil milhões de euros, mas apenas gastaram 10,55 mil milhões, uma diferença de 3,18 mil milhões de euros, não tendo sido executados 1,5 mil milhões de euros de compromissos a transitar para anos seguintes e 259 milhões de obrigações por pagar.
“Dos dados da execução orçamental do subsector, parece existir, em termos globais, um antes e um depois da LCPA [Lei dos Compromissos e Pagamentos em Atraso], que tem levado a que, sem prejuízo da previsão orçamental inicial, não se tenham vindo a registar défices (excluindo 2021 com o impacto da COVID-19)”, frisa o especialista em finanças locais da entidade liderada por Nazaré Costa Cabral.
É aqui recordado que as restrições impostas na execução pela LCPA, contribuem, regra geral, para que não se realize despesa sem que exista receita para a financiar no próprio ano. Algumas exceções prendem-se, nomeadamente, com a despesa financiada por fundos comunitários, sendo a contrapartida nacional, quando exista, também ela objeto de exceções, designadamente quando financiada por empréstimos.
O estudo dá conta de que a taxa de execução da receita total foi, em 2022, de 92,9%. Dos 13,8 mil milhões de euros previstos, foram cobrados 12,8 mil milhões de euros, menos mil milhões de euros. “Esta taxa global, se ventilada por classificação económica, evidencia comportamentos distintos relativamente aos diferentes agregados”, explica o autor do estudo do CFP, acrescentando que para esta situação contribuirão as regras previsionais, que se aplicam sobretudo à receita (na medida em que é esta que determina, de facto, a possibilidade de inscrição de despesa atendendo ao princípio do equilíbrio global aplicável aos orçamentos municipais).
“Aquelas regras limitam as previsões de receita, mas essas previsões podem ser excedidas na execução, contrariamente ao que sucede com a despesa, em que as dotações aprovadas representam um limite máximo que não pode ser ultrapassado”, diz, salientando que em 2022 a execução da receita fiscal superou a previsão, sobretudo no que diz respeito ao IMT, em resultado da dinâmica favorável do mercado imobiliário nesse ano comparativamente aos anos anteriores, e, em menor grau, quanto à receita da derrama municipal sobre o IRC.
Receita de capital com maiores desvios
O estudo conclui que o maior desvio, entre o previsto e o executado, ocorre na receita efetiva, muito em particular na receita de capital, em que a receita cobrada em 2022 representou pouco mais de metade do previsto: 1.908 milhões de euros de receita prevista, contra 1.079 milhões de receita liquidada, representando um desvio de 900 milhões de euros.
Para o investigador do CFP, na receita de capital são, contudo, as transferências relativas a fundos provenientes da União Europeia destinadas a financiamento de despesas de investimento as que apresentam um maior desvio absoluto. “Com uma taxa de execução de 49% em 2022 são determinantes para o nível de execução da receita de capital, dado que mais de metade da receita prevista pelos municípios para este subagregado diz respeito a estas verbas”, frisa.
Acrescenta ainda que idêntica situação se passa com as transferências correntes relativas a fundos europeus (execução de 54% em 2022), embora com menor impacto, dado o volume financeiro destas (relacionadas sobretudo com o Fundo Social Europeu) ser bastante inferior às transferências para comparticipação de investimento municipal.
No que se refere à despesa de investimento (aquisição de bens de capital – investimento direto, mas também transferências de capital – investimento indireto), o estudo de um caso analisado ilustra que a sua baixa taxa de execução se encontra associada ao facto de, apesar de prevista, a receita proveniente de fundos europeus tem ficado muito aquém do esperado. Esta situação, diz, conduzia, antes da LCPA, a frequentes alterações orçamentais, “levando a prática reiterada deste procedimento orçamental a situações financeiras graves na Administração Local”.
Rui Dias refere que esta prática vai também em sentido contrário ao previsto na regra previsional do Plano Oficial de Contabilidade das Autarquias Locais (POCAL) - antes, portanto da LCPA-, uma vez que esta determina que os montantes das dotações de despesa, resultantes destes desvios de previsão, não podem ser utilizados como contrapartida de alterações orçamentais.
É ainda assinalado que a taxa de execução, relativa à rubrica de venda de bens de investimento em 2022, é “significativamente inferior à que vinha sendo registada, apesar da reiterada repetição da norma em sede de OE que limita a sua previsão”. Esta regra, conclui o estudo, “que poderia (ou mesmo deveria) ser aditada ao SNC-AP (Sistema de Normalização Contabilística para as Administrações Pública) ou, em alternativa, à Lei das Finanças Locais, terá interesse em ser acompanhada”. E defende que o mesmo se aplica à norma que tem vindo a ser replicada em sede de OE, relativa à possibilidade de antecipação da integração dos saldos da execução orçamental.
O dilema do equilíbrio total do orçamento a apresentar
Para além das regras previsionais, o estudo do CFP sinaliza que “o problema essencial parece residir no dilema entre a obrigatoriedade quanto ao equilíbrio total do orçamento a apresentar e a necessidade de assunção de responsabilidades perante terceiros assumidas em exercícios anteriores”.
Este dilema, de acordo com autor do estudo, leva a “distorções” nas previsões de receita anuais necessárias para cobrir o diferencial, face ao volume de despesa anual acrescida da decorrente de compromissos anteriores.
Para que a previsão de execução do orçamento não seja afetada por aquelas distorções, seria necessário, diz, que os orçamentos locais distinguissem a despesa e a receita relativa a períodos anteriores, quer na sua elaboração, quer na sua apresentação e divulgação.
Recorda-se aqui que a legislação, muito em particular o SNC-AP, já providencia as ferramentas necessárias para que isto aconteça. Mas salienta-se que caberá às entidades delas fazerem uso.
“Para além desta questão central, a incorporação da regra previsional quanto à venda de bens de investimento na legislação ordinária, por forma a não depender de anualmente ter de constar na lei do OE, parece evidente. Acresce a atenção ao princípio da especificação, evitando o recurso abusivo a rubricas residuais, situação, aliás, que não é exclusiva da Administração Local, e que, em parte, decorre de alguma desadequação do classificador económico das receitas e despesas públicas à realidade atual”, conclui.