Mais de milhão de quilómetros de cabos submarinos atravessam os oceanos e ligam continentes. São, no fundo, protagonistas de uma globalização à escala.
Em entrevista ao Jornal Económico, Luís Bernardino, professor da Universidade Autónoma de Lisboa, aponta que a rede de cabos submarinos global deve duplicar nos próximos anos, assente na "necessidade crescente de acesso à internet , por via das tecnologias 5G e 6G e, especialmente, pelo uso expansionista da Inteligência Artificial na nossa vida".
O professor universitário e coronel de Infantaria do Exército Português em situação de reserva admite que este é "um paradigma de crescimento que integra os centros de dados num ecossistema digital agregador e que irá revolucionar a nossa forma de gerir o acesso à informação e o conhecimento".
São estes mesmos cabos submarinos, que têm em Portugal um "centro geoestratégico", que proporcionam "muitas oportunidades em termos económicos e de desenvolvimento para o país", ainda que exijam "uma série de investimentos estratégicos e de melhorias ao nível das infraestruturas, da energia renovável, da regulação, na qualificação dos recursos humanos e na melhoria da segurança destas infraestruturas críticas".
Portugal tornou-se um ponto estratégico para a instalação de cabos submarinos. Qual a razão de se ter tornado tão atrativo para este tipo de projetos?
Portugal tem uma posição geoestratégica privilegiada na rede global de cabos submarinos. Cerca de 15 a 20% dos cabos submarinos passam atualmente na nossa zona de soberania e a tendência é para aumentar nos próximos anos. Temos em Portugal vários fatores de atratividade para a amarração de cabos submarinos (tal como já acontecia há mais de cem anos com os cabos dos telégrafos que ligavam a Europa aos Estados Unidos da América e que amarravam em Carcavelos). Desde logo, a nossa posição geoestratégica privilegiada, na plataforma de ligação entre a Europa, América e África, e com ligação direta a todos os continentes, ligando diretamente mais de 60 países. Depois pela morfologia da nossa costa e das nossas águas, que tecnicamente favorecem a amarração de cabos submarinos, e também porque somos um país caracterizado por uma matriz de segurança internacional muito favorável, entre muitos outros fatores, essencialmente porque estamos na União Europeia e representamos economicamente um bom investimento para as grandes empresas que se dedicam à economia de dados.
Que potencialidades é que a instalação dos cabos submarinos traz à economia portuguesa?
A amarração de cabos submarinos é importante na economia nacional pela possibilidade que traz de criação de centros de dados, apostando-se na verdadeira economia do futuro que é a economia de dados. Esta economia inclui a gestão, processamento ou a distribuição de dados como mecanismo gerador de conhecimento e de desenvolvimento. Esse é o verdadeiro benefício para Portugal e é na criação de um ecossistema de dados nacional que devemos apostar, integrando os cabos submarinos, com os pontos de amarração e, especialmente, apostando no reforço da ligação aos centros de dados e integrando fornecimento de energia renovável a baixo custo. Em todos estes segmentos existem múltiplas potencialidades para a nossa economia e Portugal pode beneficiar deste novo paradigma global, principalmente se apostar na criação de centros de dados e não apenas na amarração e passagem de cabos submarinos como acontece, ainda, na atualidade.
Embora a lista de benefícios seja composta, há também preocupações e desafios. Quais as principais implicações para a infraestrutura de Portugal com a instalação destes cabos?
Existem muitos desafios para Portugal, desde logo temos de ter uma estratégia nacional para criar um ecossistema digital que integre todas as suas dimensões e que permita investir em infraestruturas que vão ser revolucionárias, e que estejam adaptadas às necessidades do futuro da economia digital. Estou a falar concretamente da criação de centros de dados, da aposta na energia verde e em criar uma rede nacional de vias de comunicação que facilite a integração destes sistemas, quer seja no armazenamento, distribuição ou segurança dos dados, e por inerência das infraestruturas críticas em que assentam.
E em relação à segurança nacional e privacidade dos dados? Que preocupações surgem com a crescente dependência da amarração dos cabos em Portugal?
A questão da segurança dos cabos submarinos e sistemas conexos é extremamente relevante para a segurança nacional, tendo impacto na economia nacional e deve ser vista em duas dimensões. Uma primeira dimensão de segurança física, que inclui as infraestruturas consideradas críticas (e só por isso já tem um estatuto de proteção e socorro especial), estando ao abrigo de legislação europeia e nacional, e constituindo fator de preocupação acrescido para as Forças e Serviços de Segurança. E, por outro lado, a segurança dos dados, ou seja, a dimensão da cibersegurança e aí também os Estados tem responsabilidade na sua proteção, em linha também com o que é definido nas políticas de segurança europeia (NIS2) ou na Estratégia Nacional de ciberdefesa e proteção do ciberespaço.
Em Portugal, o Gabinete Nacional de Segurança (GNS) tem responsabilidades nestes dois domínios, havendo já um trabalho que nos permite estar em patamares de segurança muito interessantes, mas por outro, existindo uma necessidade de reforçar e acompanhar esta mudança de paradigma em termos de reforço da segurança na amarração de cabos submarinos e demais infraestruturas integradas.
As questões geopolíticas têm alguma preocupação neste caso? Podem estes cabos submarinos ser um motivo de ligação entre comunidades mundiais ou geradores de conflito?
Importa ter consciência que o sistema de cabos submarinos é um alvo estratégico e que a destruição de centros de dados pode gerar um efeito catastrófico na economia global e na nossa forma de vida. Atualmente, temos já constatado um crescendo de “incidentes” com os cabos submarinos, essencialmente por ação humana (cerca de 75%). Entre estes, alguns poderão ser intencionais (sempre de difícil atribuição da responsabilidade), o que nos deve levar a pensar que temos de facto uma ameaça híbrida e que pode ser relevante no quadro da conflitualidade regional e global. Só para esclarecer melhor, a destruição de um ou dois cabos submarinos numa região pode não ser relevante, pois os operadores encarregam-se de divergir e encontrar alternativas (redundâncias) para que a latência na passagem da informação entre países e continentes não seja relevante, e para que as comunicações não sejam afetadas. Não obstante, o problema pode agravar-se se tivermos, em simultâneo, a disrupção em vários cabos submarinos, a destruição de sistemas de energia e a neutralização dos centros de dados. O sistema fica inoperativo e a economia mundial será seriamente afetada…
É expectável que Portugal se torne um ator global para a conectividade digital?
Portugal já é atualmente um importante player internacional na conectividade global, não só pelo número de cabos submarinos que amarram em Portugal (16) como pelo número de cabos que cruzam as nossas águas territoriais, mas especialmente pela atratividade das empresas globais que já identificaram Portugal como um ator relevante. Como exemplos temos a Google, a Amazon e a Meta, entre outras. Tenho muitas vezes a sensação de que não temos conhecimento e confiança no nosso potencial e que este só se torna visível quando são os outros a afirmarem essa realidade. Esse também é um paradigma que tem de mudar, temos de ter capacidade de atrair investimento e não ficar à espera de que venham descobrir Portugal.
Que ações é que as empresas e o Governo devem adotar para garantir o sucesso, a longo prazo, e maximizar os seus benefícios para a economia?
Desde logo é importante que possa existir um entendimento político-estratégico (parceria estratégica) entre o Estado e as empresas. Embora tenham objetivos e responsabilidades diferentes, devem assumir que juntos serão mais fortes e que o grau atual de complexidade dos sistemas digitais implica encontrar estratégias e soluções integradas. A disrupção dos sistemas informacionais é péssima para ambos e para a economia nacional. A União Europeia também está bem consciente desta necessidade de legislar para todos e de responsabilizar Empresas e Estados de uma forma combinada e articulada, sendo que é ainda muito complexo determinar a diferença entre a lógica económico-comercial das empresas e da soberania que preocupa os Estados.
De que forma o recém-criado Observatório dos Ecossistemas e Infraestruturas Digitais (OEID), a que preside, pode contribuir para tudo o que falamos até agora?
O Observatório dos Ecossistemas e Infraestruturas Digitais nasceu da vontade de um conjunto de cidadãos, relacionada com a temática dos ecossistemas digitais, que partilham uma visão comum sobre a relevância geoestratégia e geopolítica de Portugal no mundo, e acreditamos que através do livre exercício da cidadania ativa podemos proporcionar contributos para as políticas públicas, junto de empresas e na sociedade em geral, quer no âmbito nacional quer internacional.
O Observatório pretende colaborar com entidades Governamentais, Académicas e entidades Públicas e Privadas para a definição de políticas de segurança e prevenção dos Ecossistemas e Infraestruturas Digitais em Portugal, e contribuir assim para um melhor esclarecimento da opinião pública sobre infraestruturas digitais nacionais e globais e sobre o papel de Portugal no mundo da conectividade digital.
Temos como um dos principais objetivos atingir um patamar de sustentabilidade, relevância e prestígio técnico e científico, reconhecido por diferentes entidades, através do livre exercício de cidadania de todos os membros do Observatório e num contributo que se torne relevante para o pensamento geoestratégico e geopolítico em torno do posicionamento de Portugal na rede global da comunicação digital. Para isso, contamos com todos.