Apesar da correção das contas públicas na última década ter conferido a Portugal uma situação “invejável” para enfrentar abrandamentos da economia europeia e global, o país registou em 2024 o maior disparo da despesa corrente em mais de 30 anos, levantando algumas questões quanto ao equilíbrio orçamental nos próximos anos. Quem avisa é o Banco de Portugal (BdP), que cortou a projeção de crescimento este ano de forma assinalável, apontando agora a um avanço do PIB menor do que o projetado pelo Governo.
“Desde 1992 que a despesa pública corrente não subia tanto como está a subir em 2024”, avisou o governador do BdP, Mário Centeno, na conferência de imprensa de apresentação do Boletim Económico de outubro. No documento de previsões macroeconómicas, o banco central reviu em baixa a expectativa de crescimento este ano de 2,0% para 1,6%, bem como para 2025, de 2,3% para 2,1%.
O governador procurou frisar que, “dada a sensibilidade e o momento”, os comentários não deveriam ser vistos como quaisquer considerações orçamentais, mas não deixou de lembrar que “todos nós passámos por anos suficientes e por execuções orçamentais suficientes para saber o que isso significa”. Acresce a esta evolução que “nos anos que vêm vamos ter de começar a pagar o PRR”, o que constituirá nova fonte de pressão nas contas públicas portuguesas.
A subida da despesa em 2024 reflete efeitos desfasados da inflação, explicou, e não leva a alterações significativas na avaliação da situação orçamental por parte do banco central, esclareceu. Dada a proximidade da apresentação da proposta de Orçamento do Estado para 2025 (OE2025), o Boletim Económico divulgado esta terça-feira não contém projeções orçamentais, ao contrário do documento de junho, mas Centeno ressalvou que “os riscos apresentados nessa altura devem ser transladados para hoje”.
A situação económica do país é, ainda assim, “invejável” na medida em que “muitos poucos países na Europa podem enfrentar o novo ciclo europeu, com as incertezas que traz, com a estabilidade que Portugal tem”. Um sinal desta evolução positiva é que “houve ganhos salariais em Portugal em todos os anos deste ciclo inflacionista”, uma dinâmica que permitiu reforçar o consumo privado e sustentar o crescimento perante o baixo investimento crónico do país.
Também no investimento para este ano o BdP cortou nas projeções, passando de 3,3% este ano para 0,8%, enquanto a projeção para 2025 foi cortada de 6,1% para 5,4%. Do lado do consumo privado, o banco espera um avanço de 2,5% este ano, ou seja, melhor do que 2,0% projetados em junho, mas as exportações foram revistas em baixa de 4,2% para 3,8%.
Por outro lado, a expectativa “de um maior crescimento do PIB no quarto trimestre e no início de 2025 deve-se, em parte, à recuperação das exportações associada à aceleração da procura externa e ao maior dinamismo do turismo”, além de um crescimento do consumo privado.
Os fatores essenciais para manter a trajetória de convergência nos próximos anos serão a estabilidade financeira e fiscal, por um lado, e as qualificações da população, argumentou o governador, lembrando os impactos positivos que o emprego tem tido nos últimos anos. Junta-se a isso uma estabilização prevista da poupança em níveis historicamente elevados.
Altura é de constituir almofadas
Mário Centeno aconselhou ainda os portugueses a constituírem almofadas financeiras, dado o aumento do rendimento disponível, o alívio da inflação e a expectativa de abrandamento significativo da economia global, o que irá dificultar o crescimento nacional. O aviso é extensível ao Estado, englobando todos os agentes económicos do país.
“É o momento de todos construírem almofadas financeiras para o futuro”, afirmou o governador, falando num “ciclo económico positivo, emprego e salários a aumentar e com a política monetária numa fase descendente”.
Esta dinâmica relaciona-se com a subida da poupança das famílias, que estabilizará nos próximos dois anos num valor historicamente elevado (em torno de 11%), um fenómeno que o BdP projeta que ocorrerá mesmo com a normalização da política monetária no mesmo período. Para o governador do banco central, tal deve-se sobretudo a uma maior precaução das famílias após uma década difícil, mas também com a habituação a um ambiente de taxas positivas, algo que não ocorreu entre a crise financeira e a pandemia.
A recomendação não se limita, no entanto, às famílias. Perante este cenário, cabe também ao Estado reforçar as almofadas financeiras para fazer face a um possível abrandamento da economia global, com o país a ter de “tentar reservar a estabilidade” conferida pela correção nas contas públicas na última década.
Também para a banca a recomendação se aplica, em linha com a nova exigência do BdP para que os bancos constituam, a partir de 1 de janeiro do próximo ano, nova almofada financeira – a chamada reserva contracíclica. Neste capítulo, a “estabilidade financeira é um fator absolutamente essencial para convergir”, pelo que cabe à banca continuar a cumprir as recomendações macroprudenciais do banco central.
“Todas as medidas que adiem serviço da dívida, que aumentem o serviço da dívida, que aumentem o risco dos mutuários são contrárias à estabilidade financeira”, resumiu.