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Veerle Vandeweerd: "Estaremos a criar ou a ampliar o mundo dividido, entre os que têm e os que não têm?"

A cofundadora da COVID Education Alliance diz, ao JE, que a sala de aula está condenada a desaparecer, mas não o professor, cujo papel até se tornará mais forte. O mundo está a mudar, mas não pode cair na armadilha que tem seguido em que apenas os mais ricos conseguirão fazer a transição para a escola do futuro.

Veerle Vandeweerd, cofundadora da COVID Education Alliance (COVIDEA), iniciativa criada para colmatar o fosso acentuado pela pandemia nos sistemas de ensino e ajudá-los a adaptar-se às exigências do futuro, vem ao Altice Arena, em Lisboa, no dia 27 de setembro partilhar a visão de como construir um mundo mais justo através da educação. A antiga diretora de Ambiente e Energia do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento), responsável pelo departamento de sustentabilidade e membro do Conselho Consultivo do Global Entrepreneurship Center, sediado em Düsseldorf, na Alemanha, é uma das vozes mais aguardadas no Digital with Purpose Global Summit, que junta líderes portugueses e estrangeiros em torno do papel fundamental do digital no cumprimento dos objetivos sustentáveis.

A pensadora belga defende que os sistemas educativos têm de adaptar-se ao mundo em rápida mudança e à era digital em evolução acelerada e, assim, contribuir para a realização dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), em especial o ODS da educação - ODS4. Não será fácil, admite. A maioria dos sistemas não fez ainda a transição para a era digital, nem está equipada para responder a choques externos nem para um mundo em rápida mudança e digitalização.

As enormes diferenças em termos de conetividade e de oportunidades digitais agravam estes problemas para os segmentos mais pobres e mais remotos da sociedade. “O financiamento, as tecnologias e o conhecimento para que isso aconteça estão disponíveis. É uma questão de vontade política e de uma distribuição mais justa dos abundantes recursos financeiros e outros”, afirma. O mundo está a mudar e para estarmos preparados para este mundo em mudança, o sistema educacional precisa de mudar primeiro, afirma ao Jornal Económico. 

 

As tecnologias digitais vão alterar o conceito atual de escola?

O conceito atual de escola precisa de mudar, não apenas por causa das tecnologias digitais, mas porque as sociedades, economias e realidades geopolíticas estão a mudar. Uma das principais razões pelas quais as sociedades estão a mudar são os novos desenvolvimentos tecnológicos, desde computadores até novas formas de produzir alimentos, energia, materiais, construir casas, a forma como nos movimentamos e transportamos bens e serviços, entre outros. As tecnologias digitais fazem parte desta onda de inovação, mas certamente não serão a única. Em conjunto, estas inovações tecnológicas têm mudado drasticamente o nosso ambiente, com impacto em todos os aspetos do nosso dia-a-dia. A verdade é que o modelo atual das escolas já não está adequado ao propósito. Foi desenvolvido há 150 anos para servir sociedades e economias diferentes, onde os estudantes eram preparados para exercer uma determinada profissão durante toda a vida, servindo uma economia baseada no mercado, que dependia muito da exploração dos recursos naturais. As tecnologias digitais podem ajudar a preparar os estudantes para se tornarem membros ativos e produtivos num mundo em rápida mudança e cada vez mais complexo. De igual modo, podem apoiar a aprendizagem ao longo da vida. Por si só, não são a razão pela qual o conceito atual das escolas está a mudar, mas podem contribuir largamente para ajudar a concretizar a mudança necessária.

 

A sala de aula tradicional está condenada a desaparecer?

Colocar a questão dessa forma remete para uma conotação negativa em relação às mudanças necessárias a efetuar no ambiente da sala de aula. Dá a ideia de que estamos a perder algo valioso se a sala de aula tradicional desaparecer. Em vez de nos apegarmos ao passado, e a um sistema educacional desatualizado e inadequado, podemos acolher uma mudança no ambiente tradicional da sala de aula. Um ambiente em que se otimize o uso das novas tecnologias para ensinar, aos estudantes, competências valiosas e conhecimentos necessários para uma vida plena.

 

Salas de aula tradicionais que usam apenas caneta, papel e quadro estão desalinhadas com o mundo real, onde os computadores são uma parte essencial da vida, e onde mais de 70% dos jovens jogam videojogos. É como se estivéssemos a ensinar à luz de velas quando a eletricidade está por toda a parte, ou usar fogueiras para aquecer as salas de aula. Os sistemas educacionais são uma das últimas instituições a abraçar as novas tecnologias, embora sejam as instituições responsáveis por preparar os estudantes para o futuro. Portanto, sim, a sala de aula tradicional está destinada a desaparecer porque existem muitos métodos de ensino e aprendizagem melhores, desde realidade aumentada e virtual até à tutoria personalizada suportada pela inteligência artificial.

 

Sintetizando

Aprender a decorar era um dos fundamentos do sistema educacional clássico. Agora, adquirir conhecimento é apenas uma das tarefas da sala de aula, tão importante quanto construir conhecimento é desenvolver caráter, julgamento, resiliência, consciência social e competências de cidadania. A inteligência social e emocional e o domínio da ciência computacional são atualmente tão importantes como adquirir conhecimento.

 

A concentração é crítica nas novas gerações. A transformação ao nível das aprendizagens passa por menos livros e mais vídeos?

Existem muitas razões pelas quais a capacidade de concentração dos estudantes é, em média, menor do que nas gerações anteriores. O excesso de informação, o bombardeio de publicidade e o fluxo múltiplo e interminável de ruído, luz e som são certamente fatores que contribuem para tal. Por outro lado, a velocidade cada vez maior com que a inovação entra no mercado requer conhecimentos detalhados sobre estruturas cada vez mais complexas e, portanto, exigem muita concentração.

Provavelmente, não existe uma correlação direta entre a diminuição do uso de livros e mais vídeos e a falta de concentração. O facto é que, para as gerações anteriores, os livros eram a principal ferramenta de transmissão de conhecimento – o que já não é o caso. Computadores, vídeos, realidade virtual e o emergente metaverso são, agora, também poderosas ferramentas para compartilhar informações, adquirir conhecimento e competências, comunicar, etc. Em vez de terem apenas um meio disponível - os livros - para ensinar e aprender, existem agora muitos outros meios que podem ser utilizados, oferecendo aos estudantes a oportunidade de escolher as ferramentas que melhor se adaptam às suas capacidades e competências. Alguns alunos podem absorver melhor informações através de vídeos, ao passo que outros podem ainda preferir os livros.

 

Numa escola mais tecnológica é crucial o acesso à tecnologia. É crível um aumento da desigualdade dentro dos países e entre países mais e menos desenvolvidos?

Essa é, realmente, a grande questão! Estaremos a criar ou a ampliar o mundo dividido, entre os que têm e os que não têm? Iremos aumentar o fosso entre os que têm acesso à internet e às ferramentas associadas e aqueles que não têm? Possivelmente, mas não tem de ser assim. Se continuarmos no caminho de desenvolvimento que temos seguido até agora, os mais ricos serão capazes de fazer a transição para a escola do futuro, adotando as novas tecnologias e usando-as para preparar os estudantes para o futuro, enquanto aqueles que não têm recursos ficarão presos no mundo do passado.

Decisões sensatas por parte dos líderes mundiais e do sector privado poderiam alterar esta situação e permitir que países, que neste momento estão mais atrasados na educação, possam impulsionar sistemas educacionais atualizados e relevantes para todos, recorrendo ao poder das ferramentas digitais. Para tal, em primeiro lugar, é necessário existir conectividade para todos. É uma tarefa gigantesca, mas não impossível. O financiamento, as tecnologias e o conhecimento para que isso aconteça estão disponíveis. É uma questão de vontade política e de uma distribuição mais justa dos abundantes recursos financeiros e outros. O mundo está a mudar. Para estarmos preparados para este mundo em mudança, o sistema educacional precisa de mudar primeiro. Quanto mais cedo, melhor.