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"Unidades Locais de Saúde podem ser um mecanismo que torne o SNS sustentável"

As Unidades Locais de Saúde vão avançar numa altura em que os médicos estão de costas voltadas com a tutela. Em entrevista ao JE, o fundador da Nobox e médico especialista em Saúde Pública, Diogo Fernandes da Silva, fala das mudanças que este modelo vai ter no SNS, das preocupações e da necessidade de envolver os profissionais no processo de mudança.

As Unidades Locais de Saúde não são novas. Porquê avançar agora com este modelo? 

As Unidades Locais de Saúde (ULS) não são uma ideia nova. A primeira foi implementada em 1999 em Matosinhos e neste momento temos oito ULS a funcionar em Portugal, sendo que os resultados são muito díspares entre si, com dados a revelar que os mesmos não dependem só da estrutura organizacional.

Esta mudança pretende ser uma iniciativa que revigorize o Serviço Nacional de Saúde, de forma a que ele dê resposta às necessidades de saúde da atualidade e do futuro. A questão até poderia ser porque não foi implementada antes. Fatores relacionados com a saúde das populações, como o envelhecimento, a preponderância de doenças não comunicáveis e as expectativas depositadas nos cuidados prestados, assim como fatores relacionados com a indústria da saúde, como o desenvolvimento tecnológico e farmacêutico, os diferentes padrões motivacionais e de expectativas dos profissionais e os tipos de liderança e gestão, mandatam, há muito, que a saúde se adapte, revolucione e modernize. Esta iniciativa pretende ser um mecanismo despoletante dessa mudança.

Qual o sentido desta reforma no sistema de saúde?

O SNS transformou-se numa estrutura cristalizada, com dificuldade de articulação entre as suas instituições e com, ainda, muito baixa articulação entre a saúde pública, os cuidados de saúde primários e os cuidados hospitalares, sendo por isso incapaz de estar à altura das exigências atuais. Para além disso, tem sido sustentado, ao longo dos anos, por um forte empenho e compromisso por parte dos seus profissionais, sem grandes preocupações com a atualização dos mecanismos de gestão das equipas e de dinamização, com consequências diretas para o seu bem-estar e motivação. 

As ULS podem assim ser um mecanismo que torne o SNS sustentável e adaptado aos novos contextos, criando condições para a inovação e para uma maior eficiência do sistema, caso seja explorada a fundo, e não apenas à superfície. A visão está lá: facilitar a integração dos cuidados de saúde primários e hospitalares focando a prestação de cuidados na visão do doente como um, ou seja, ao longo de toda a jornada de cuidados. As dúvidas surgem com a implementação.

Quais as principais vantagens deste modelo para os profissionais? E para os utentes?

Devemos olhar para as ULS na perspetiva de oportunidades criadas, como referido atrás. A estrutura das ULS, na teoria, permitirá uma integração de cuidados mais fácil, assim como criará condições para rever o modelo de financiamento do SNS, mais ajustado à realidade. Ou seja, se um doente tem insuficiência cardíaca, mais facilmente poderá ser tratado de forma articulada entre o hospital e o centro de saúde, se toda a informação e se os profissionais estiverem articulados por se encontrarem sob a alçada da mesma instituição, sendo que essa instituição receberá, também, financiamento de acordo com os resultados globais de tratamento do doente, em vez de um financiamento “por produção” (ou seja, quantidade) como tem sido até agora. 

A integração dos cuidados de saúde primários e hospitalares numa estrutura única facilita a comunicação e articulação entre todos os intervenientes, criando oportunidades de colaboração e permitindo dar uma resposta mais contínua e otimizada ao longo da jornada do doente. Com este foco no percurso do doente, o financiamento poderá, também, acompanhar esta tendência.

Para os profissionais, esta poderá ser uma oportunidade para melhorar as lideranças e chefias, melhorar as suas condições laborais, simplificar processos institucionais e inovar, não só no atendimento e na prestação de serviços, como também na comunicação inter-pares e no trabalho em equipa multidisciplinar. 

Diz que os médicos têm dúvidas em relação a este modelo. Que dúvidas?

Não creio que os médicos ou outros profissionais tenham dúvidas específicas sobre os benefícios do modelo em si, mas estejam mais preocupados com o impacto da sua implementação no terreno. Basta pensar que o modelo já começou a ser implementado há mais de 20 anos, sem que se tenha generalizado. Infelizmente, este é um problema recorrente na saúde: a sucessiva implementação de alterações organizacionais, sem que tenham uma tradução direta na prestação de cuidados e em melhorias da organização, comprometendo os resultados prometidos. Compete à DE do SNS e à tutela implementar mecanismos que motivem, capacitem e envolvam os profissionais nos processos de melhoria e integração dos cuidados. Neste caso, a preocupação é também acentuada pela vontade de implementação de várias reformas em simultâneo, nomeadamente a generalização das USF Modelo B e Centros de Responsabilidade Integrada (CRI).

Além disso, esta reforma tem sido apresentada como ULS 2.0, mas ninguém explicou devidamente em que consistem. Qual a diferença entre as novas ULS e as anteriores e como serão implementadas?

É normal que os profissionais estejam reticentes, quando faltam apenas dois meses para o início do ano, e ainda não se sabe no que consistem exatamente as ULS 2.0, qual será o papel dos profissionais nesta nova estrutura, nem como será feito o processo de transição. 

Quais as principais preocupações da classe médica?

As muitas dúvidas e preocupações surgem da falta de uma direção clara de como o processo irá decorrer. Apesar da reforma ter sido anunciada, o caminho para a implementar ainda não foi apresentado de forma clara, gerando um clima de incerteza nos profissionais.

Uma das preocupações centrais relaciona-se com o processo de articulação entre os cuidados primários e hospitalares, com dúvidas de como será promovida e realizada esta articulação e quais as consequências diretas para os cuidados prestados. Por exemplo, existe o receio relacionado com o risco de a gestão a curto prazo das urgências hospitalares poder absorver também os cuidados de saúde primários, reduzindo progressivamente a sua capacidade de cuidados de vigilância e prevenção que contribuem no longo prazo para a redução do recurso a cuidados agudos. 

Por outro lado, sendo tão importante e urgente assegurar autonomia e poder de decisão às lideranças intermédias e equipas de saúde, estamos a criar estruturas de gestão de dimensão ainda maior que as atuais, com alguns exemplos de ULS que cobrem quase toda uma região (como o caso da ULS Algarve e ULS de Coimbra, por exemplo). De que forma se evitará que esta centralização lentifique ainda mais os processos internos?

Adicionalmente, irão as ULS ultrapassar o risco de centrarem a integração apenas em aspetos de gestão e administrativos, ou irão verdadeiramente integrar os circuitos dos doentes, os cuidados de saúde e o acompanhamento dos doentes?

Por fim, surgem também preocupações de índole mais prática sobre se os locais de trabalho irão mudar, quem serão as chefias, como serão os horários, entre muitas outras dúvidas que estão por esclarecer. 

A Direção Executiva do SNS anunciou a criação de 31 ULS (para um total de 39) a partir de janeiro. Como deverá ser feita a transição?

Para que o novo modelo de ULS possa trazer os benefícios pretendidos, será crítico um processo consciente de gestão de mudança que procure ouvir e esclarecer os profissionais de saúde, e definir como os vamos envolver e mobilizar para a adoção e implementação do novo modelo, com responsabilidades e cronogramas claros.

Para que a mudança cumpra os seus objetivos, devem-se inovar não só as metodologias relacionadas com a organização do trabalho, hierarquias e gestão de recursos humanos, mas também criar mecanismos internos que auxiliem a inovação clínica e a integração de cuidados no contexto deste novo modelo organizacional, ao mesmo tempo que se capacitam as pessoas com as competências e ferramentas exigidas por esta nova organização.

Um outro aspeto importante para a operacionalização da visão das ULS será promover uma cultura de inovação e trabalho colaborativo e criar programas e ferramentas que auxiliem os profissionais neste caminho de inovação, mas também apoiá-los e facilitar o teste e implementação das soluções, diminuir as infindáveis barreiras e burocracia que hoje em dia dificultam a concretização destes projetos.

Sem o devido envolvimento das equipas e profissionais, este processo estará condenado a aspetos não clínicos, deixando de lado a inovação clínica e a oportunidade de prestar cuidados verdadeiramente centrados nos doentes.

As ULS vão permitir a inovação no sector da saúde pública?

Eu até arriscaria colocar a questão ao contrário. Terão as ULS sucesso se não promoverem inovação e integração da saúde pública na sua orgânica? 

A falta de integração dos planos de saúde regionais nas decisões e políticas de atuação (tanto clínica como de suporte) dos cuidados de saúde primários e hospitalares é atualmente um entrave à adaptação dos cuidados às necessidades específicas da população. 

Ou seja, a verdadeira integração de cuidados só acontecerá se com esta mudança criarmos espaço, estrutura e mecanismos para repensar as jornadas e experiências dos doentes e procurar novas soluções que procurem dar a resposta certa, no momento certo, de forma personalizada e ajustadas aos perfis das comunidades que as ULS servem. Uma ULS que tenha significativamente uma maior preponderância de determinados tipos de doenças deverá crescer de forma a criar condições para as prevenir, tratar e seguir de forma diferente de outras ULS.

Como se perspetiva esta mudança, numa altura em que os médicos estão a ferro e fogo com o Governo?

Se quisermos implementar as ULS de forma superficial, esta será mais uma oportunidade perdida para convergir os cuidados de saúde com as necessidades atuais. Se quisermos implementar as ULS cumprindo os objetivos já falados, então isso não poderá acontecer mantendo os profissionais nas atuais condições. O atual protesto médico revela uma desatenção crónica às condições de trabalho - e atenção, não só dos médicos mas dos profissionais de saúde no geral. 

Caso os perfis de gestão não sejam alterados, as questões contratuais revistas e a motivação e desenvolvimento dos profissionais explorada e abordada, será muito difícil cumprir a visão das ULS.  

É inevitável que após tantos anos, os profissionais vejam estes anúncios com ceticismo e resistência, pelo que terá de ser feito um esforço adicional de mobilização para lhes devolver a esperança de que algo de facto mudará desta vez. A verdade é que, no final, o sucesso dependerá da forma como este novo modelo é recebido, integrado e posto em prática pelas equipas de saúde.