O caminho de Damasco está cheio de uniformes do exército abandonados por soldados do exército sírio em pânico, quando, às primeiras horas da manhã de domingo, perceberam que o seu líder, Bashar al-Assad, abandonou o país ao cabo de 54 anos de governo da família sobre a Síria. Tanques do exército sírio que saíram dos quartéis para parar a insurgência rebelde, que começou há apenas 12 dias, estão igualmente abandonados, vazios. Uma estrada de desperdício e abandono, que contrasta com a aparente alegria da vitória dos insurgentes.
Dessa alegria surgiu a primeira surpresa: o líder do grupo Hayat Tahrir al-Sham (HTS), Mohammed al-Julani, o mais proeminente dos rebeldes sírios – pelo menos nesta fase confusa e indeterminada do golpe – anunciou que o ex-primeiro-ministro Mohammed Ghazi al-Jalali vai liderar um governo de transição nos próximos meses. Al-Julani, que abandonou o seu nome de guerra em favor do seu nome de nascimento (Ahmad al-Shaara), usou a icónica mesquita Omayyad, situada na cidade velha de Damasco, para fazer a sua primeira aparição pública após a queda do governo de al-Assad.
As reportagens feitas na capital da Síria dão nota de que a população estaria farta da repressão, da corrupção e do abandono do regime de al-Assad – que em maio de 2021 foi eleito para um quarto mandato como presidente com 95% dos votos, segundo as contagens oficiais – e abraçou a causa dos insurgentes. Se se confirmar a presença do ex-primeiro-ministro à frente do próximo governo, talvez isso queira dizer, segundo os analistas, que o país não cairá nas mãos dos islamitas radicais e que não se transformará num novo Estado Islâmico, desta vez com um país inteiro nas mãos.
No Ocidente – e no meio dos tradicionais pedidos de contenção – os comentários oficiais são de reserva: é preciso ganhar tempo para se perceber o que se passa.
De concreto, sabe-se que, após os grupos extremistas avançarem sobre a capital da Síria, Mohammed Ghazi al-Jalali disse estar disposto a “estender a mão” à oposição e a colaborar com a “liderança que será eleita pelo povo”. Como autoridade política síria ainda em Damasco, juntamente com outros 18 ministros, o primeiro-ministro está, segundo as agências internacionais, em contacto com a liderança do Hayat Tahrir al-Sham e prometeu que os militantes não avançarão para a repressão da insurgência.
“Uma nova era está a começar na história da Síria. Esperamos que uma era de pluralismo esteja a chegar”, disse al-Jalali num telefonema para a emissora Al Arabiya, e insistiu que está pronto para cooperar com qualquer liderança que apoie o povo, ao mesmo tempo que pedia aos grupos extremistas que preservem as instituições estatais “destinadas a todos”. Al-Julani ordenou às suas forças para que não se aproximassem das instituições públicas em Damasco, “que permanecerão sob a supervisão do antigo primeiro-ministro até à sua entrega oficial”.
A Coligação Nacional das Forças Revolucionárias e de Oposição Sírias declarou este domingo que está a trabalhar na passagem de poder para um “órgão governamental de transição”. “A Coligação Nacional confirma à comunidade internacional que continua a trabalhar para concluir a transferência de poder para um órgão governamental de transição com plenos poderes executivos, a fim de criar uma Síria livre, democrática e pluralista”, dizia um comunicado à imprensa distribuído no domingo. Mas ninguém sabe ao certo quem são os líderes que vão receber esse poder, quem o entregará (em princípio será al-Jalali) ou se os insurgentes cumprirã o a promessa de não interferência.
Segundo a imprensa, o ministro da Justiça da Síria, Ahmad Sayyed, disse esperar que a transição de poder no país ocorra sem problemas. “O processo de transição política será tranquilo”, disse à Al Arabiya, acrescentando que “não haverá guerra civil no país”. Sendo na Síria, não haverá certamente ninguém que possa fazer semelhante promessa. Sayyed admitiu, no entanto, que nem ele nem qualquer outro membro do gabinete sírio tinha previsto desenvolvimentos tão rápidos e, principalmente, a fuga do presidente: “ninguém sabe para onde foi ou o que aconteceu a Bashar al-Assad”. O ex-primeiro-ministro disse que a questão da presença militar da Rússia na Síria não é da sua competência e será resolvida posteriormente pelas novas autoridades, segundo a agência russa TASS – que indicava também que o Ministério das Relações Exteriores da Rússia informou este domingo que al-Assad negociou com os grupos rebeldes que deixaria a presidência e sairia do país.
Do seu lado, o regime iraniano – que apoiava, tal como a Rússia, Bashar al-Assad – disse que o destino da Síria é de responsabilidade exclusiva do povo e deve ser encontrado sem imposição ou intervenção estrangeira, disse o Ministério das Relações Exteriores do Irão este domingo. O ministério pediu um diálogo nacional para formar um governo inclusivo que representasse todos os segmentos da sociedade síria. "Não pouparemos esforços para ajudar a estabelecer a segurança e a estabilidade na Síria e, para esse fim, continuaremos as consultas com todas as partes influentes na região" – afirmando esperar que os laços entre Teerão e Damasco continuem com base na "abordagem sábia e perspicaz" dos dois países. Estes laços permitiram que o Irão espalhasse a sua influência por um corredor terrestre desde a sua fronteira ocidental, passando pelo Iraque, até ao Líbano, para manter apoio ao Hezbollah. A televisão estatal iraniana informou que o grupo Hayat Tahrir al-Sham garantiu que a santidade dos santuários xiitas na Síria seria preservada.
A administração norte-americana de Joe Biden iria reunir, ao final de domingo, todos os seus diversos departamentos de segurança para gizar uma estratégia que lhe permita uma forma de responder aos acontecimentos na Síria. Já para Donald Trump, o presidente eleito dos EUA, Bashar al-Assad fugiu da Síria depois de perder o apoio da Rússia, escreveu nas redes sociais. "Al-Assad foi-se embora. Ele fugiu do seu país. O seu protetor, a Rússia, liderada por Vladimir Putin, já não o quer proteger". Segundo Trump, a Rússia "perdeu todo o interesse na Síria por causa da Ucrânia, onde cerca de 600 mil soldados russos estão feridos ou mortos, numa guerra que nunca deveria ter começado e que pode durar para sempre". "A Rússia e o Irão estão atualmente enfraquecidos, um por causa da Ucrânia e de uma má economia, o outro por causa de Israel e dos seus sucessos em combate", acrescentou Trump.
Entretanto, o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, disse que a deposição de al-Assad foi “um dia histórico" e o resultado direto dos golpes desferidos por Israel ao Irão e ao Hezbollah do Líbano, “aliados mais fiéis de al-Assad”. A imprensa avança que Israel conduziu três ataques aéreos contra um grande complexo de segurança no distrito de Kafr, em Damasco, onde alegadamente existe um centro de desenvolvimento iraniano de mísseis.
Ainda este domingo, a Arábia Saudita disse estar satisfeita com as “medidas positivas” tomadas para garantir a segurança do povo sírio e confirma que apoia o povo e suas escolhas neste “estágio crítico”, ao mesmo tempo que apelou à comunidade internacional para que apoiasse a Síria sem interferir nos seus assuntos internos.
A presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, disse que o bloco ajudaria a reconstruir uma Síria que protegesse as minorias. “A Europa está pronta para apoiar a salvaguarda da unidade nacional e a reconstrução de um Estado sírio que proteja todas as minorias”, disse nas redes sociais. “A cruel ditadura de al-Assad entrou em colapso. Essa mudança histórica na região oferece oportunidades, mas não é isenta de riscos”, acrescentou.
Por seu turno, o Ministério das Relações Exteriores da China disse que o país está a monitorizar de perto os desenvolvimentos na situação na Síria e espera que a estabilidade possa ser restaurada o mais rapidamente possível. "O governo chinês ajudou ativamente os cidadãos chineses dispostos a deixar a Síria com segurança e ordem, manteve contacto com aqueles que permaneceram no país e forneceu orientação de segurança. Instamos as partes relevantes na Síria a tomarem medidas concretas para garantirem a segurança das instituições e do pessoal chinês no país. A embaixada chinesa na Síria continua operacional".
Recorde-se que grupos extremistas armados da oposição síria lançaram uma ofensiva em larga escala contra tropas do governo nas províncias de Aleppo e Idlib em 27 de novembro. Em 7 de dezembro, os opositores a Bashar al-Assad tomaram várias cidades de relevo, incluindo Aleppo, Hama, Deir ez-Zor, Daraa e Homs. Na manhã de domingo, entraram em Damasco e as tropas do governo retiraram-se da cidade. Após entrarem em Damasco, os insurgentes fecharam os aeroportos internacionais (assim como o de Aleppo) e assim permanecerão até 18 de dezembro, pelo menos, e assumiram o controlo da estação pública de rádio e televisão. Mais tarde, libertaram da prisão militar de Sednaya (na capital) os detidos que foram presos pelas forças de segurança durante o governo al-Assad. Segundo o jornal “al-Watan”, de Doha (Qatar), os rebeldes declararam a imposição de recolher obrigatório em Damasco entre as 16h e as 5h. A tensão fez com que milhares de cidadãos sírios começassem a cruzar a fronteira com o Líbano. Vale a pena recordar também que o HTS chegou a ser muito próximo da Al Qaeda (era conhecido como Frente Nusra) até que o seu líder, Abu Mohammed al-Golani, cortou laços com o movimento jihadista global em 2016.
Até 2002, Bashar al-Assad parecia ser o novo rosto que iria dar à Síria um novo destino, depois de anos de brutalidade patrocinada pelo seu pai, Hafez al-Assad, que morreu em 2000, tendo levado o partido Baath ao poder em 1970. Oftalmologista de profissão, com estudos de Medicina em Londres e mais tarde casado com uma mulher sírio-britânica, Asma – uma economista de investimentos do JP Morgan – Bashar estava ansioso para mostrar ao mundo que, sob a sua liderança, a Síria iria modernizar-se e ser um par do complexo conjunto de países árabes. Com o apoio do Ocidente, lançou uma campanha de relações públicas para mostrar a jovem família al-Assad como capaz de empreender essa mudança – mas internamente nunca conseguiu abrir mão da repressão, apesar do aparato ‘caritativo’ de Asma.
Em 2011, e na sequência do que ficou conhecido como a Primavera Árabe, a Síria entrou em ebulição, com a oposição a querer ter uma palavra a dizer sobre o futuro do país. Daí até ao início da guerra civil, foi um instante. Como em vários outros países muçulmanos, a primavera chegou rapidamente ao outono – e quando o Ocidente pensou que estava perante um aligeiramento dos regimes autocratas com suporte da hierarquia religiosa, foi exatamente o contrário que sucedeu. A guerra civil radicalizou os insurgentes, que se tornaram o alfobre do Estado Islâmico – que “exportou” a violência extremista para o Médio Oriente e para África, ao mesmo tempo que patrocinava o terrorismo na Europa. Grandes regiões sírias passaram a ser controladas pelos insurgentes – com al-Assad a acabar expulso da Liga Árabe, que deixou de suportar a forma como todo o processo era gerido pelo regime. A guerra, que fez mais de meio milhão de mortos e atirou milhares de refugiados para o Médio Oriente e para a Europa (via Turquia), nunca chegou verdadeiramente a acabar: entrou numa fase de baixa intensidade que prometia ser um benefício para todos, depois de, com o apoio militar da Rússia, do Irão e do movimento Hezbollah, al-Assad ter reconquistado uma grande parte do país em 2015 e a totalidade de Alepo em 2016, cuja parte oriental tinha sido tomada pelos rebeldes em 2012. Essa baixa intensidade permitiu à Rússia manter o controlo do país, ao Irão continuar a usar o seu território para ‘alimentar’ o Hezbollah e à Turquia fazer raids punitivos sobre os seus inimigos curdos – que se haviam distinguido no combate ao Estado Islâmico, mas que Trump, no seu primeiro mandato como presidente, abandonaria.
Para todos os efeitos, neste momento, parece ser impossível determinar qual será o futuro imediato da Síria.