Os médicos portugueses são dos que têm os salários mais baixos na União Europeia. Esta é uma conclusão da OCDE que analisou as remunerações anuais praticadas no sector da saúde em 2020, com os profissionais nacionais de saúde a receber menos de 45 mil euros anuais.
Os sindicatos médicos portugueses, como o Sindicato Independente Médico (SIM) e a Federação Nacional dos Médicos (FNAM), têm estado em reuniões com o Governo para um aumento salarial. As últimas negociações levaram o Governo a propor um valor que estas entidades classificam como um “insulto” e “impensável”: 1,6%. Ao Jornal Económico, Jorge Roque da Cunha do SIM e Joana Bordalo e Sá da FNAM consideram que o aumento deveria ser “de mais de 20%”, podendo mesmo chegar aos 30%.
Na opinião dos dois dirigentes, este é um aumento digno que serve “pelo menos para compensar o poder de compra perdido nos últimos anos”. A FNAM lembra que “os médicos foram das classes profissionais que mais perderam o poder de compra” com a estagnação dos salários e a subida da inflação na última década.
Acima de tudo, Roque da Cunha sustenta que este aumento “terá de ser competitivo com o sector privado”, num movimento semelhante àquele que aconteceu na Caixa Geral de Depósitos e que permitiu que o banco passasse de “prejuízos à distribuição de mais de 600 milhões de euros ao Estado só no primeiro trimestre de 2023”. Para o SIM, o aumento deve ser feito “faseadamente, mas sempre levando em conta a inflação”.
Apesar da mesa de negociações ter cartas em cima da mesa, o primeiro-ministro já veio a público confirmar que o aumento salarial dos médicos não era um prioridade para o atual Governo, sendo que o orçamento do Serviço Nacional de Saúde (SNS) aumentou 56% desde que formou Governo. Para já, defende António Costa, a prioridade para o SNS é “reforçar a qualidade da gestão e melhorar a eficiência” do sistema de saúde.
"Parece ser intenção do Governo continuar a promover a fuga de médicos para o sector privado e emigração”, diz Joana Bordalo e Sá
“Apenas posso concluir que é a confirmar que o SNS não é uma prioridade para o Governo”, diz Roque da Cunha sobre as palavras proferidas pelo primeiro-ministro. “É lamentável, porque para além da maior carga fiscal de sempre que os portugueses são fustigados, a maioria dos portugueses gasta cada vez mais dinheiro do seu bolso para ter acesso aos cuidados de saúde e tem necessidade de uma segunda cobertura”.
Esta é uma opinião partilhada por Joana Bordalo e Sá. “A estratégia do Ministério da Saúde não é investir no SNS, médicos e restantes profissionais verdadeiramente, como tem vindo a ser demonstrado. Parece ser intenção do Governo continuar a promover a fuga de médicos para o sector privado e emigração”, conta ao JE.
Afinal, quanto ganham os médicos?
A carga horária semanal dos médicos está atualmente nas 40 horas.
Ora, de acordo com dados pedidos pelo JE aos dois sindicatos, um médico interno de formação geral recebe mensalmente, com as 40 horas semanais, um salário à volta dos 1.650 euros. O SIM destaca que um médico sem especialidade, portanto um interno, aufere de 6,99 euros líquidos por hora, convergindo com os valores ditos pela FNAM.
“Um especialista [recebe] 1.800 euros líquidos e depois depende da progressão na carreira que assenta em concursos públicos muito exigentes. Ou seja, não é uma progressão por antiguidade”, diz-nos Roque da Cunha.
O mesmo dirigente sustenta que existem três categorias na carreira médica: “assistente, assistente graduado e assistente graduado sénior”, sendo este último equivalente à posição de chefe de serviço. “Um médico no final da carreira ganha, no máximo e se estiver a tempo completo, 5.270 euros brutos por 40 horas semanais; se fizer 35 horas semanais ganha, no topo da carreira, pouco mais de 3.200 euros brutos”, conta.
Mais uma vez, a FNAM confirma os valores do SIM. Um médico com dez anos de carreira a trabalhar a carga horária completa recebe à volta de 2.860 euros, enquanto um médico com 20 anos de carreira, com o mesmo horário, já aufere de pouco mais de 3.340 euros.
Jorge Roque da Cunha sustenta que, dado o congelamento das carreiras nos últimos anos, “uma pouca centena de médicos atingem o topo de carreira” de chegar a chefe de serviço.
Os dados da OCDE dizem isto mesmo: um médico especialista recebia, anualmente, 43.562 euros em 2020. O salário dos médicos especialistas portugueses está abaixo dos islandeses, britânicos, espanhóis e holandeses.
Mas os dados vão mais longe aquando da comparação entre crescimento nominal (sem ter em conta a inflação) e real na última década. Os salários dos médicos especialistas caíram 1,6%, enquanto dos médicos de clínica geral decresceram 1,8%. Portugal foi o país da OCDE em análise que vai contraiu nesta perspetiva.
Em termos da paridade do poder de compra (igualdade entre países), o salário médio anual dos especialistas quase que se encontra no fim da tabela, com 48.008 euros. Este é, no fundo, um valor que contrasta severamente com os 136 mil euros registados na Alemanha ou os 81.127 euros de Espanha.
Como se pode repor as carreiras médicas?
Ainda que possa parecer algo complicado, os médicos só querem melhorar as suas condições. “Revendo dignamente as grelhas salariais e melhorando as condições de trabalho, com reposição da carga semanal de 35 horas, reposição das 12 horas de urgência no horário normal em vez das atuais 18”, destaca a dirigente da FNAM, ainda que estas sejam apenas algumas das reivindicações.
Roque da Cunha diz que também é preciso “investir em equipamentos e condições de trabalho que permitam voltar a tornar o SNS atrativo para os jovens médicos e para aqueles que (ainda) nele permanecem”.
Joana Bordalo e Sá sustenta ao JE que também é preciso “redimensionar a lista de utentes dos médicos de família”, que atualmente se encontra pelas costuras devido à falta de profissionais nos centros de saúde para as demasiadas inscrições que existem.
“Investir em equipamentos e condições de trabalho que permitam voltar a tornar o SNS atrativo para os jovens médicos e para aqueles que (ainda) nele permanecem”, aponta Roque da Cunha.
Deve ser ainda garantido “o suplemento de disponibilidade permanente a todos os médicos de saúde pública, independentemente da instituição onde exercem funções, a integração do internato médico na carreira profissional, reposição dos dias de férias para 25, com a possibilidade de cinco adicionais se gozados fora da época alta”.
Outro ‘conselho’ é a possibilidade da reforma aos 62 anos de idade ou 26 anos de serviço “dado o risco e penosidade da profissão”.
Médicos estrangeiros substituem entrada de profissionais?
Mais uma vez, as opiniões dos dois dirigentes convergem. A prioridade do SNS deve ser a entrada de profissionais portugueses. “Não há falta de médicos em Portugal, mas sim no SNS”, atira a FNAM.
“Deviam ser criadas condições para que o SNS se tornasse atrativo para os médicos”, aponta Bordalo e Sá. Roque da Cunha concorda: “A estratégia devia ser valorizar os recursos humanos que o nosso país produz e que são de uma qualidade internacionalmente reconhecida, em vez de ir buscar médicos a países cuja formação académica é, no mínimo, discutível e sem diferenciação clínica”.
Sobre a contratação de médicos a países estrangeiros como Cuba e Brasil, como veio ultimamente noticiado, Roque da Cunha lembra que a vinda desses profissionais de saúde “é financiar regimes políticos ditatoriais (caso de Cuba) que, no entender das agências internacionais do sector, promovem um verdadeiro tráfico humano, em benefício das suas finanças”.
“Sem carreiras médicas não teria sido possível o SNS”
Os últimos dados mostram que mais de três mil médicos se vão aposentar nos próximos anos, depois de quase 800 profissionais o terem feito em 2022. Este é um número considerável, tendo em conta a falta de médicos que Portugal apresenta atualmente.
A maioria das reformas é na especialidade de Medicina Geral e Familiar (médicos de família), com mais de 900 profissionais a entregarem os papéis no próximo triénio.
Devido a este elevado valor, que representa 10% da força médica atualmente em funções, “a prioridade devia ser, desde logo, o reforço do SNS através da revitalização da carreira médica”, defende o SIM.
Este elevado número é, para a FNAM, “mais uma razão para motivar o Governo a olhar para a negociação da carreira médica e revisão salarial como uma das principais prioridades”.
“A saída de médicos do SNS, por motivo de aposentação, tem de ser compensada e equilibrada com a retenção de médicos no SNS e medidas que atraiam médicos que saíram para o sector privado ou migraram”, defende Joana Bordalo e Sá.
Roque da Cunha vai mais longe e cita aquele que é apontado como o fundador do SNS, António Arnaut. “O Dr. António Arnaut sempre disse que sem carreiras médicas não seria possível o SNS e que era necessário requalificar remuneratoriamente os médicos do SNS”.
Assim, e sendo a reforma de médicos um problema do futuro iminente, como se podem atrair jovens médicos em início de carreira? A resposta dos dois dirigentes é curta: tornar a carreira médica atrativa.
Ora, isso “implicar dar condições remuneratórias dignas e assegurar os meios e os recursos para que a Medicina que é praticada no SNS volte a ter a inovação e o dinamismo de outrora”, diz-nos o dirigente do SIM. A também presidente da FNAM diz que é preciso oferecer “condições dignas de trabalho e uma remuneração justa”, dando a “possibilidade de conciliar a vida profissional com a pessoal, familiar e social”, algo que nem sempre é possível devido à elevada carga horária.
“Os médicos e as carreiras médicas são um dos pilares do SNS. Como tal, devem ser devidamente valorizados”, sublinha.
Sindicato marca greve de dois dias e alerta para "urgente" proposta salarial
Insatisfeitos com o rumo da mesa de negociações, o Sindicato Independente dos Médicos (SIM) declarou uma nova greve. Esta paralisação no sector da saúde em Lisboa e Vale do Tejo é a segunda em menos de um mês, depois da última greve dos médicos internos a 23 e 24 de agosto.
A greve afeta quatro hospitais (Loures, Vila Franca de Xira, Garcia de Orta, José de Almeida-Cascais), três centros hospitalares (Barreiro-Montijo, Setúbal e Psiquiátrico de Lisboa), o Instituto de Oftalmologia Gama Pinto em Lisboa, o IPO de Lisboa e o Departamento de Medicina Desportiva de Lisboa. Os agrupamentos de centros de saúde de Cascais, Loures/Odivelas, Estuário do Tejo, Almada/Seixal, Arco Ribeirinho e Arrábida também são visados na greve.
Em comunicado, o SIM indica que esta paralisação é mais um passo na luta dos trabalhadores médicos. "Visa fazer com que o Governo dê uma resposta efetiva ao caderno reivindicativo sindical, visa também o urgente encerramento da atividade da mesa negocial constituída entre o Governo e o SIM, e que, especifica e prioritariamente, seja apresentada pelos ministros das Finanças e da Saúde uma proposta de grelha salarial que reponha a carreira das perdas acumuladas por força da erosão inflacionista da última década e que posicione com honra e justiça toda a classe médica, incluindo os médicos internos, na Tabela Remuneratória Única da Função Pública", lê-se no comunicado emitido pela entidade.
No fundo, os médicos pedem apenas aquilo que disseram ao Jornal Económico: aumentos salariais e a reposição das carreiras depois de anos de perdas significativas. O sindicato quer também que a interminável mesa de negociações termine e que o Governo dê mais que 1,6% de aumento.
A greve acontece a partir das 00 horas de dia 13 de setembro e prolongam-se até às 24 horas de dia 14 de setembro. Portanto, os médicos destas instituições estão dois dias em paralisação.
Neste período temporal, os médicos "não prestam trabalho normal, nem trabalho extraordinário, também designado trabalho suplementar". Ou seja, existe uma paralisação total e "com ausência dos locais de trabalho".
De recordar que os médicos do Algarve, Alentejo e Açores estiveram em greve a 30 e 31 de agosto e os médicos do Centro do país nos dias 9 e 10 de agosto. Para a ARS Norte estão ainda previstas duas greves, a 6 e 7 de setembro, ainda esta semana, e a 20 e 21 de setembro.