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Rússia e Estados Unidos consolidam opção nuclear na Ucrânia

A decisão de Joe Biden de permitir ataques em profundidade à Rússia com o recurso a mísseis norte-americanos e a resposta do Kremlin - alargar o perímetro teórico do uso de armas nucleares, está a deixar o mundo nervoso. Principalmente a Europa.

A decisão do presidente norte-americano Joe Biden de permitir o uso de mísseis de fabrico norte-americano em ataques profundos ao território russo (até 300 km a partir da fronteira) por parte do exército ucraniano e a resposta da Rússia – que aumentou a possibilidade teórica de uma resposta nuclear a uma agressão externa, apesar de a Constituição federal ser já bastante abrangente nesta matéria – consolida a guerra nuclear como opção. A decisão de Biden apanhou de surpresa o ‘consórcio ocidental’ que apoia a Ucrânia, uma vez que o presidente está em final de mandato e sabe que o presidente eleito, Donald Trump, tem uma conceção muito diversa do envolvimento dos Estados Unidos na Ucrânia. Como também sabe que a decisão não contribui para a paz: se suspeitasse que ela levaria ao calar das armas, tê-la-ia tomado durante a campanha eleitoral para que servisse de reforço à causa de Kamala Harris.

A retórica militar subiu de tom de imediato – como com certeza Joe Biden antecipou com facilidade. A maioria dos países que ‘importam’ no apoio à Ucrânia apressaram-se a declarar que apoiavam a iniciativa de Joe Biden e trataram de revelar que secundariam a opção de Washington. Só a Alemanha ‘furou’ este alinhamento, com o chanceler Olaf Scholz a afirmar que não enviará mísseis de longo alcance para a Ucrânia. Os seus críticos apressaram-se a afirmar que isso se deve ao facto de a Alemanha ter em vista regressar aos acordos comerciais com a Rússia na área das energias fósseis (principalmente o gás natural). É com certeza verdade, e a isso acresce a evidência de que os alemães estão fartos de, num quadro de crise económica, verem bastas quantidades de recursos financeiros a serem desviados dos investimentos reprodutivos caseiros para as trincheiras do Donbass.

A milhares de quilómetros dessa fronteira, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergey Lavrov – que se encontra no Brasil a participar na cimeira do G20 – tentou acalmar os ânimos exaltados depois de se saber da decisão de Washington, tendo dito que o seu país não usará as armas nucleares irresponsavelmente, apesar de ter concordado (com o seu presidente, Vladimir Putin) que a decisão de Biden vai no sentido de suspender qualquer caminho em direção à paz e exerce pressão sobre o terreno. O Kremlin já tinha deixado saber que iria responder de forma adequada se os céus da Rússia fossem atravessados pelos mísseis de longo alcance – o que sucedeu precisamente esta terça-feira com seis disparos. O mundo, e principalmente a Europa, está agora na expectativa de saber com o que pode contar.

A França já tem um vislumbre: o facto de Paris estar a treinar soldados ucranianos numa base militar em França significa que está diretamente envolvida no conflito, disse Lavrov no Brasil. “Emmanuel Macron tem sido um dos maiores e mais vocais apoiantes materiais da guerra, defendendo a vitória sobre a Rússia, a derrota estratégica da Rússia. Os militares ucranianos estão atualmente a concluir o seu treino em França; uma brigada de choque de assalto inteira está a ser preparada. Em essência, a França está a participar diretamente no combate", especificou o diplomata russo. O mesmo vale para o uso de mísseis SCALP de fabrico francês, que são idênticos ao Storm Shadow do Reino Unido", acrescentou.

Quem não quis dizer nada sobre qual será a resposta do organismo que lidera o neerlandês Mark Rutte. O novo secretário-geral da NATO afirmou que nada dirá sobre como será a resposta da aliança perante a evidência de que a guerra no Donbass entrou num novo patamar. “Para não dar informações ao inimigo”, Rutte preferiu nada dizer sobre o assunto, segundo relatam as agências internacionais.

Posição igualmente cautelosa vem da Turquia, país da NATO. O seu presidente, Recep Erdogan, pediu à organização que veja e considere cuidadosamente a declaração da Rússia sobre o alargamento da sua doutrina nuclear. "Não podemos dizer que há prós numa guerra com armas nucleares", disse à margem da cimeira do G-20, para enfatizar que espera um cessar-fogo permanente entre a Rússia e a Ucrânia. Insistindo que a Turquia tem de manter boas relações com a Rússia e a Ucrânia, Erdogan afirmou que continuaria a pedir paz, apesar do ataque da Ucrânia à Rússia com os mísseis norte-americanos ATACMS, o que, disse, "não foi positivo".

Pelo sim, pelo não, os países escandinavos trataram de fazer uma nova edição dos seus manuais de sobrevivência a um ataque nuclear, que enviaram para as caixas do correio dos seus cidadãos. Na Rússia, os fabricantes de abrigos nucleares em formato familiar colocaram as suas fábricas a fazer horas extra.

Também esta terça-feira, vários governos europeus acusaram a Rússia de aumentar ataques híbridos contra aliados ocidentais da Ucrânia, ao mesmo tempo que os países bálticos investigam se o corte de dois cabos de telecomunicações de fibra ótica no Mar Báltico foi ou não sabotagem. As autoridades europeias não acusaram diretamente a Rússia de destruir os cabos, mas pelo menos a Alemanha e a Polónia afirmaram que provavelmente foi mesmo um ato de sabotagem. Em resposta, as forças armadas da Lituânia aumentaram a vigilância das suas águas territoriais.

"A escalada das atividades híbridas de Moscovo contra a NATO e os países da União Europeia não tem precedentes na sua variedade e escala, criando riscos de segurança significativos", disseram os ministros das Relações Exteriores da França, Alemanha, Itália, Polónia e Grã-Bretanha em comunicado. A declaração surge depois de dois cabos do Báltico, um ligando a Finlândia e a Alemanha e outro a Suécia à Lituânia, terem sido cortados. A Polónia – o país europeu com uma retórica mais explicitamente contra a Rússia – ameaçou mesmo cortar relações com o Kremlin. Mas o vice-presidente da Comissão Europeia e ‘ministro’ dos Negócios Estrangeiros, Josep Borrell, adotou um tom mais cauteloso, dizendo que é muito cedo para acusações. “Seria irresponsável da minha parte atribuir o incidente, ou acidente, ou como se lhe quiser chamar, a qualquer pessoa", disse em declarações em Bruxelas.

Em Kiev, há aparentemente uma discussão sobre se a Ucrânia deve desenvolver as suas próprias armas nucleares – debate que emana da preocupação de que Donald Trump interrompa a ajuda militar, mas que já vem de antes. Um documento do Ministério da Defesa ucraniano afirma que o país é capaz de desenvolver rapidamente armas nucleares simples. "A produção de uma bomba atómica simples, como os Estados Unidos realizaram como parte do Projeto Manhattan [na II Guerra], não seria uma tarefa difícil 80 anos depois", refere o documento.