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Rosalia Ortega: "Miúdos que ganham dois mil euros, como acontece em Portugal, não podem ter cláusulas de 50 milhões"

É considerada a melhor advogada de direito desportivo do mundo e em entrevista ao JE deixou várias reflexões sobre as mudanças necessárias à indústria do futebol. Uma dessas alterações está ligada às cláusulas de rescisão e aí, Portugal tem uma enorme responsabilidade.

Lisboa recebeu recentemente a primeira edição do International Sports Law e os temas em debate entrelaçam-se com o futuro do futebol europeu e mundial: os modelos de competições, a sobrecarga de jogos e como os futebolistas assumem cada vez um papel preponderante nesta indústria. A espanhola Rosalia Ortega, considerada a melhor advogada de direito desportivo do mundo, esteve no programa "Jogo Económico", da plataforma multimédia JE TV.

E a presidente do Instituto Iber-Americano do Direito Desportivo não deixou nada por dizer. A jurisprudência do Tribunal Arbitral do Desporto (CAS), os direitos de imagem do desportista e o Código Mundial Antidopagem para 2027 estiveram em debate - entre outros temas -, na primeira 'International Sports Law Conference' em Portugal, que decorreu no Estádio da Luz nos dias 18 e 19 de outubro.

Rosalia Ortega manifesta-se contra o duplo critério que se coloca quando existem rescisões unilaterais (em que o jogador sai sempre a perder) e para Portugal, deixou um recado muito sério no que diz respeito às polémicas cláusulas de rescisão: "Miúdos com salários de dois mil euros por mês não podem ter cláusulas de 50 milhões de euros".

 

A primeira conferência do direito desportivo vem num momento crucial do futebol internacional?
Esta conferência, o primeiro encontro de cariz internacional no âmbito do direito desportivo, não podia ter acontecido numa melhor altura. Estamos num momento normativo sem precedentes: nem o caso Bosman vai ter uma repercussão como aquele que vivemos atualmente. A FIFA já anunciou que vai proceder a mudanças e que vai aproveitar o momento para fazer uma modernização deste artigo 17 que eu acho que precisa de grandes modificações.
 
Quais são os desafios atuais que deverão marcar o futuro da indústria?
Em relação a este artigo 17 vai ter enorme importância em qualquer tipo de transferência. Há aqui uma primeira questão que é muito importante e que está relacionada com o direito do trabalho e com essa famosa transferência que quando um jogador vai mudar de um país para outro (transferência internacional) precisa de estar habilitado. E essa habilitação é absolutamente necessária para obter o direito ao trabalho. Essa é uma das questões mais importantes. Segunda questão importante: o que vai acontecer no momento em que se termina um contrato sem justa causa? Nesta situação, temos um cenário desproporcional desde o momento em que foi criado. A este propósito, há uma frase muito conhecida e que é assim: "Há duas coisas que é melhor não saber como são feitas: as leis e as salsichas".
 
E isso acontece quando se trata de rescisões sem justa causa?
Aqui, é isto que acontece: há uma limitação para o jogador. Quando temos um cenário em que um contrato termina sem justa causa, as consequências são absolutamente diferentes caso seja o clube ou o jogador. Desde o ponto de vista económico, que por norma é o mais importante, se termina o contrato esse artigo 17 diz que quem termina tem que indemnizar a outra parte, com ou sem justa causa. Mas quando é o jogador que vai receber essa compensação, a FIFA determina um limite que está relacionado com o valor residual do contrato a cinco anos. Do lado contrário temos as cláusulas de rescisão. Não se percebe que um jogador, sendo a parte fraca economicamente, tenha um castigo tão desproporcionado. E isso acontece em Portugal: miúdos com contratos em que ganham dois mil euros por mês com uma cláusula de rescisão de 50 milhões de euros. E em caso de rescisão, o máximo que o jogador vai receber são os cinco anos de salários, algo que muitas vezes nem acontece. Essa desproporção acabou por dar origem ao caso Diarra porque o que se dizia é que nestes casos, o jogador teria que pagar uma compensação que é tão elevada que o futebolista não tem capacidade de pagar e além disso, a FIFA não o deixa trabalhar, o que também não lhe permite pagar esse valor. Neste caso, o trabalho dos advogados do Charleroi foi impressionante. Esta é uma situação que tem que mudar e mudar para o mundo inteiro, não só para a União Europeia. A FIFA tem de garantir a estabilidade contratual e que não faça uma distinção tão desproporcional sobre quem é que termina um contrato sem justa causa. Na Premier League, considerada a melhor do mundo, não existem cláusulas de rescisão. E ninguém fala disso. Deixo isso para reflexão.
 
E quanto às queixas dos jogadores devido à sobrecarga de jogos?
Outro tema muito presente está relacionado com a sobrecarga de jogos a que se assiste no futebol atualmente e da quantidade de trabalho que o futebolista está a suportar com o seu corpo. Não podemos esquecer que o futebol é feito pelos jogadores e, apesar de não ser especialista em medicina desportiva, há um limite para o número de horas a que se deve submeter um futebolista. E isso não se coloca apenas no plano da saúde mas também no aspecto contratual. Estamos a chegar a uma situação limite. Veja-se: a verba mais cobiçada pelos clubes são os direitos televisivos e quem gosta de futebol, quer ver mais jogos. Mas é preciso perceber que estamos a falar de seres humanos e que o segundo negócio mais rentável são as transferências. É um bom momento para fazermos uma reflexão em conjunto: media, agentes e todos os profissionais que trabalham nesta indústria.
 
Um maior reconhecimento do papel dos jogadores e dos adeptos vai contribuir para um futuro mais saudável da indústria do futebol?
Este é um negócio em que se vendem camisolas, bilhetes e direitos de televisão. É uma atividade puramente económica. Mas esta é uma atividade económica que tem de ser regulada.