Uma das novidades do ano letivo 2024/2025, cujo arranque fica completo esta segunda-feira, é Literacias e Dados, uma nova disciplina criada no âmbito dos projetos piloto de inovação pedagógica (PPIP). A disciplina será testada em sete escolas do ensino secundário de todos os espectros - públicas, privadas e profissionais, nos próximos três anos.
Cristina Vaz de Almeida, presidente da Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde (SPLS), diz ao JE que faz todo o sentido ouvir a Sociedade no âmbito da criação da disciplina, que deverá incluir uma estratégia transversal de literacia em saúde. “Temos um projeto chave na mão para a literacia em saúde nas escolas”, adianta. Nesta entrevista, defende que mais do que mudar currículos, é preciso introduzir o desenvolvimento de competências de literacia em saúde em todas as disciplinas. Os números falam por si: Portugal continua a ter um baixo nível de literacia em saúde. É preciso começar pelos mais novos, e sobretudo aproveitar as escolas como fontes de desenvolvimento de competências em saúde. "A saúde tem efeitos em todas as áreas da vida de uma pessoa", salienta.
O que conhecem do projeto governamental?
Neste momento, muito pouco. O projeto não nos foi enviado. Aguardamos por esse momento. Pensamos que se vai efetivar e que nos vão integrar. Temos do nosso lado a expertise, a ciência e as intervenções.
O Ministério da Educação, Ciência e Inovação disse à agência Lusa que o currículo da nova disciplina inclui literacia financeira, o que corrobora a designação anunciada: “Literacias e Dados”. Parece-lhe possível a literacia em saúde ficar de fora do projeto?
A saúde é riqueza intrínseca das pessoas e das sociedades que leva a melhor produtividade e rendimento de um país. Sociedades doentes são sociedades com grandes custos e improdutivas. É impossível estabilizar e ter resultados eficazes nas outras literacias sem que a literacia em saúde esteja no cerne do investimento. Como pode uma pessoa gerir melhor os custos da sua vida se estiver doente, se não tomar acertadas decisões em saúde, saber o que são alimentos saudáveis para a sua vida e ter capacidade para escolher e agir em conformidade, ou tomar decisões sobre a atividade física diária ou a sua saúde mental e as relações de conexão com os outros. Assim, sem saúde não há sociedades que progridam e sem literacia em saúde também não há competências para que se construam sociedades mais saudáveis, pessoas mais saudáveis, organizações mais saudáveis e sustentáveis.
Que démarches estão a fazer no sentido de que a disciplina tenha um módulo sobre saúde ? Pediram uma audição ao ministro da Educação?
Já pedimos uma audiência à ministra da Saúde (reunião apenas com o assessor da Secretaria de Estado da Saúde) apesar de ter sido pedida com meses de antecedência. Já falamos com uma das grandes interventoras na área da educação (nomeada para o Conselho Nacional de Educação) , a professora Margarida Gaspar de Matos, que nos garantiu que iremos encontrar formas ativas de colaboração na área da educação. Temos a nítida clareza de saber que os órgãos governativos são os prestadores de serviços à população que governam, e, por isso, com obrigações claras de ouvirem quem a eles recorre, e onde estão as sociedades científicas com as nossas. Aguardamos que nos chamem e continuaremos a investir na literacia em saúde nas escolas, seja através da sensibilização que fazemos, da formação ou dos projetos de experiências sensoriais como o "RITMO".
Os estatutos da Sociedade Portuguesa da Literacia em Saúde dizem expressamente que se deve investir na literacia em Saúde nas escolas. Como estão a lutar para concretizar este desígnio?
A Sociedade Portuguesa de Literacia em Saúde, além de expressar nitidamente nos seus estatutos a importância e necessidade de investimento nas escolas da literacia em saúde, tem, de forma permanente, alertado, participado em debates, conferências, escrito relatórios , intervenções comunitárias, e procurado fazer pontes com as entidades governamentais nas áreas da saúde, educação, social para a implementação e reforço de políticas públicas e da integração nos currículos deste campo da literacia em saúde.
Em concreto, o que defendem ao nível das aprendizagens?
Não queremos alterar profundamente os currículos, mas aproveitar as disciplinas para desenvolver mais competências de literacia em saúde entre os estudantes, professores, equipas escolares e competências parentais e de cuidadores. Neste sentido, em 2023 assinamos um memorando de entendimento com a Direção Geral de Educação para a execução de ações nas escolas secundárias relacionadas com a literacia em saúde (projeto RITMO e ATIVAR). Mas ainda não fomos contatados pelo Ministério da Educação, pese embora consideremos que, de uma forma geral, a literacia em saúde deve anteceder as outras literacias, seja financeira, cultural, científica, da informação, uma vez que as competências em saúde para melhores decisões em saúde e bem-estar são a base da estabilidade e vivências da pessoa nas comunidades.
Qual o vosso envolvimento com o processo de decisão e com os decisores?
Participei no grupo consultivo para o Plano Nacional de Literacia em Saúde e Ciências do Comportamento a convite da Direção Geral da Saúde (professor Miguel Arriaga, atualmente, Diretor de Serviços da Prevenção de Doença e Promoção da Saúde). Temos tido ampla intervenção no terreno nas comunidades, com associações de doentes, com escolas ao longo do ciclo de vida. Fizemos ainda os contatos, embora sem grande retorno, com o Ministério da Saúde, Secretaria de Estado da Saúde (deste Governo), apesar da vontade de colaboração da nossa parte, e temos uma ponte com a secretária de Estado da Solidariedade e Trabalho atual, Clara Marques Mendes, que manifestou muito interesse no âmbito de um projeto coordenador por nós para as questões da literacia em saúde das pessoas mais velhas com o programa “Do Passo ao Abraço” que investe na atividade física da pessoa idosa com cancro, que já está inserido no Plano Nacional de Envelhecimento Ativo e Saudável.
Em concreto, o que diria ao secretário Adjunto e da Educação, Alexandre Homem Cristo, se amanhã mesmo fosse recebida por este governante?
Dir-lhe-ia que não precisamos de mudar currículos. Temos é de introduzir o desenvolvimento de competências de literacia em saúde nas disciplinas para que os jovens e os restantes intervenientes ajudem a desenvolver jovens comprometidos com a sua saúde, trabalhando sobre as questões da alimentação, atividade física e saúde mental pelo menos. Que este processo é faseado, essencial, multifatorial e multiprofissional. Que todos ganham, sobretudo a qualidade de vida dos portugueses. Tudo isto é possível com capacitação, formação, intervenção direta seja presencial seja digital.
Precisamos investir dentro e fora das escolas. Dentro das escolas, nos professores, alunos e restante pessoal discente. As intervenções são diferenciadas e vão desde os alunos mais jovens até os mais velhos. Todos contam. Posso, assim, afirmar que temos um projeto chave na mão para a literacia em saúde nas escolas.
Pode exemplificar?
As crianças em Biologia ou nas Ciências podem desenvolver projetos de melhor sustentabilidade na sociedade através de uma melhor saúde, projetos relacionados com a alimentação, atividade física. Na Filosofia podem estudar autores que falaram da saúde mental por exemplo, e foram tantos a começar pelos nossos autores, Agostinho da Silva, Eduardo Lourenço, ou indo aos mais antigos filósofos, como Sócrates. No Português trabalharem sobre temas de saúde e bem-estar, ou lerem em voz alta. Castro Caldas destaca em vários estudos a importância da leitura para o desenvolvimento neurológico. Na Psicologia podem desenvolver competências sobre a gestão da saúde mental e das emoções, tão importante no reconhecimento de sintomas de ansiedade e depressão e na Química estudarem a composição dos alimentos saudáveis e os efeitos.
A estrutura curricular, com a preparação dos professores, permite sem dúvida um avanço significativo na literacia em saúde, de pessoas mais saudáveis, de sociedades menos doentes, menos obesas, menos sedentárias.
Há dados sobre os níveis de saúde em literacia em saúde dos jovens portugueses? O que dizem?
Temos feito vários estudos. O último foi sobre a saúde oral e nutricional, um estudo intitulado Health is not a rocket science. The general , nutritional and oral health literacy of portuguese adolescents. Descobrimos que as raparigas têm uma avaliação mais positiva da sua saúde oral que os rapazes, enquanto que estes têm uma mais positiva autoavaliação da sua saúde nutricional. Do estudo verificamos que há mais consciência de ambos sobre o que são comportamentos saudáveis e lesivos, mas por exemplo, têm mais dificuldade em resistir à gratificação imediata proporcionada pelas comidas não saudáveis .
Depois há estudos desenvolvidos pela professora Tânia Gaspar e pela professora Margarida Gaspar de Matos, que têm permitido avaliar os adolescentes em Portugal: estudo Health Behaviour School Aged-Children (HBSC/OMS) de 2022 que deu origem ao eBook Saúde Mental dos Jovens.
Temos juntado esforços sérios para reforçar o investimento junto dos jovens. Temos a ciência ao nosso lado e sobretudo as ações concretas, realistas e eficazes. Aguardamos os passos seguintes do Ministério da Educação e do Ministérios da Saúde, que deviam juntar mais esforços conjuntos e que beneficiam, sem dúvida, por trabalhar connosco e com outros especialistas robustos na ciência do comportamento.