Portugal deve cooperar com Espanha na energia nuclear para poder usufruir da eletricidade produzida nestas centrais. A ideia não é construir uma central nuclear em Portugal, mas sim desfrutar das centrais espanholas, país que tem know-how de décadas nesta tecnologia, para poder ter direito a esta energia. Esta é a visão defendida por um jovem engenheiro português que trabalha na indústria nuclear britânica.
Algarvio de Lagos, Miguel Sousa, 29 anos, estudou energia e engenharia mecânica na Universidade de Coimbra. Começou a carreira no Laboratório Nacional de Energia e Geologia de Portugal (LNEG) e queria fazer carreira nas energias verdes, mas depressa concluiu que, num sistema energético, ter só energia renovável não chega e começou a interessar-se por outras fontes.
Começou a questionar porque é que Portugal rejeitava por completo a energia nuclear. Decidiu estudar mais sobre o assunto. Insatisfeito, voou para o Reino Unido para prosseguir carreira no sector nuclear britânico. Trabalhou numa consultora e hoje é engenheiro de segurança nuclear na Rolls-Royce SMR, empresa que pertence à Rolls-Royce Holdings, empresa de defesa e aeronáutica, e segundo maior fabricante mundial de motores para aviões (já pertenceu à mesma empresa que produz os automóveis de luxo, mas separaram-se na década de 70: a Rolls-Royce Motor Cars).
A Rolls-Royce SMR produz reatores nucleares modulares: são mais pequenos e podem vir a ser uma solução para construir centrais mais baratas no futuro, com esta solução a estar ainda em desenvolvimento.
Em entrevista ao Jornal Económico, a partir de Inglaterra onde reside, partilhou a sua visão, a título pessoal, sobre a energia nuclear em Portugal, defendendo que o país deve desfrutar das melhores práticas desta tecnologia praticada um pouco por todo o mundo.
O especialista em energia nuclear critica o encerramento das centrais nucleares em Espanha, defendendo o prolongamento da sua vida útil. Defende também que o Governo português devia empreender iniciativas diplomáticas para chegar a um acordo com Espanha para a energia nuclear.
Neste sentido, dá o exemplo da Croácia e da Grécia, países que não queriam nuclear no seu território, mas que chegaram a acordo com a Eslovénia e Bulgária respetivamente para desenvolverem projetos no país vizinho para depois usufruir dessa eletricidade.
Acredito que na sua mente já tem uma visão para a energia nuclear em Portugal. Se mandasse em Portugal, como seria?
Sei que muitos apoiantes querem nuclear em Portugal, mas eu não defendo exatamente o nuclear para Portugal. Defenderia, sim, mais nuclear para a Península Ibérica. Por razões muito simples. Nuclear é algo que requer muito trabalho, requer um Governo estável, requer capacidades para isso. No geral, na Europa temos falta de mão-de-obra, e Portugal não é um país que tenha os salários mais atrativos do mundo.
Para começar, se um país quer incluir nuclear no seu país, tem de falar primeiro com a Agência Internacional de Energia Atómica (IAEA) das Nações Unidas, que trata de todo o processo para adaptar o país e ter tudo pronto para receber o primeiro reator nuclear. Este processo é muito longo, demora até ter o primeiro reator: 10 a 15 anos. É preciso muito empenho, muita estabilidade. Portugal não é um país com muita estabilidade em termos políticos.
Mas… já houve outros países que decidiram adoptar nuclear sem construir no seu país. Por exemplo, a Croácia, que não tem capacidades nucleares, não tem reguladores, não tem nada, mas tem um partido que quer energia nuclear. Então, foi falar com a sua vizinha Eslovénia para construírem uma central nuclear fifty-fifty, cada um paga metade. ‘Tu tens a capacidade, tens operadores, tens o regulador, tu tratas disso tudo. Eu venho com o dinheiro, e tu vens com a eletricidade’. Há o caso da Grécia que também não quer nuclear, mas pediu à Bulgária para construir mais energia nuclear.
Ora, Portugal, em termos anuais, sempre foi um importador de Espanha, sempre requereu a sua eletricidade. Espanha tem experiência nuclear, tem capacidades nucleares, têm melhores salários e agora tem um partido que está a querer livrar-se da sua energia nuclear. Penso que é algo preocupante. É algo em que Portugal devia-se envolver.
Se Portugal quiser ter nuclear, ótimo. É bastante trabalho, mas seria ideal e tem grandes benefícios nacionais. Mas se calhar um primeiro passo seria conversar com Espanha. Até partilhamos o mercado ibérico de eletricidade com Espanha. Porque é que só eles é que decidem? ‘Ok, vamos livrar-nos do nuclear’. E nós em Portugal estamos calados. Devia de haver uma relação diplomática acerca das decisões, visto que temos um mercado. Portanto, sim, nuclear para Portugal era bom porque é muito trabalho. Se calhar um primeiro passo seria nuclear na Península Ibérica.
Portanto, chegar a um acordo com Espanha sobre a construção de uma nova central no outro lado da fronteira, ou para aproveitar a capacidade existente, seria isso?
Sim, uma das melhores maneiras de evitarmos emissões para o ambiente e até em termos económicos, para manter a eletricidade mais barata, é fazer atualizações das centrais nucleares existentes de maneira a que possam operar durante mais 10/20 anos. A França está a fazer isto agora e os Estados Unidos também. Fazer as obras necessárias para que o reator consiga operar por mais 20 anos. Não é um investimento financeiro tão grande e consegue garantir a energia limpa durante mais 20 anos. A indústria nuclear de Espanha esteve a tentar defender este caso, que é possível fazer o chamado refurbishment dessas centrais para que possam ser operadas por mais tempo. Mas o Governo decidiu encerrar já o nuclear, mais cedo, quando todos os outros países estão a tentar construir novas centrais ou a estender o seu prazo. Não faz muito sentido.
Em Portugal existe o fantasma da central de Almaraz, que é a mais próxima da fronteira portuguesa. Mas gostava de perguntar como avalia o track record de Espanha em termos de segurança?
Não tenho capacidades para avaliar e, sinceramente, não tenho conhecimento do historial de segurança de cada uma das centrais. Mas devo dizer que tenho confiança nos reguladores e na Agência Internacional de Energia Atómica. Na Europa, os reguladores fazem parte de uma associação onde partilham boas práticas de segurança. Se uma central não for segura, encerram-na e ponto final. Recordo que em Espanha vão fechar as centrais por razões políticas e não de segurança. Mas o Governo espanhol não quis saber da opinião do regulador [de que poderiam operar mais tempo]. Decidiu encerrar porque Espanha é vista como o próximo hub de energia renovável e de hidrogénio e deve investir unicamente nas renováveis, muito semelhante ao Plano Nacional de Energia e Clima (PNEC 2030) de Portugal.
Qual a mensagem que transmitira ao próximo primeiro-ministro de Portugal acerca da energia nuclear?
Se tivesse oportunidade diria apenas que a maioria da Europa está a seguir nuclear com o objetivo estratégico de alcançar mais independência energética europeia. Se Portugal não quer construir, que tente conciliar isto com Espanha ou até França. Até como plano B ou como plano C se o hidrogénio verde e o armazenamento correrem mal. No Reino Unido, o nuclear pesa 15% no mix. A China, por exemplo, planeia manter à volta dos 15%. Já em França pesa entre 50% a 70%.
Que conselho é que daria aos jovens portugueses que acabem o curso e pensem em emigrar?
Façam-no. O mundo cá fora, do ponto de vista de oportunidades de emprego e de qualidade de vida é muito diferente de Portugal. Não quero fazer toda a vida no Reino Unido, existem coisas óbvias no nosso país como o clima e a comida que tanta falta fazem a um português. Mas abri os olhos, ao ver culturas diferentes de trabalho. Nas primeiras vezes que vim, embora tivesse muito trabalho, era encorajado a não fazer demasiadas horas extra. E eu ficava ‘como assim?’. Portugal precisa de ter muito mais oportunidades para os jovens. Falam em aumentar salários mínimos, diminuir os impostos aos jovens, etc. Mas não significa muito aumentar um bocadinho o salário, se a renda continua a aumentar e se as oportunidades não existem.
Conhece bem este caso, o da central nuclear Hinckley Point C no Reino Unido, que tem sofrido atrasos na sua construção e cujo orçamento disparou. Esta é a prova de que os projetos muito grandes de energia nuclear são difíceis de concretizar?
É um projeto muito grande. Na altura, quando começou o projeto, era suposto ser financiado pela EDF e pelo CGM, um grupo chinês, mas, a meio do projeto, o Governo do Reino Unido decidiu que não queria o envolvimento da China. De repente, um terço do projeto tem de ser financiado por alguém. É algo complicado. Em França e na Finlândia também houve atrasos. Diria que isto foi mais o resultado de falta de investimento na indústria nuclear, porque, em 20/30 anos, a indústria nuclear europeia não construiu um reator novo. E de repente queremos construir algo super ambicioso. Sinceramente, acho que, para toda a gente da indústria nuclear, todos estavam à espera de haver atrasos. E é impossível entregar algo com qualidade quando não temos pessoal experiente para o fazer.
Na sequência do acidente do Fukushima, o Governo alemão decidiu encerrar as centrais nucleares, uma decisão considerada muito precipitada do Governo de Angela Merkel. Como é que olha para esta decisão? Especialmente agora que houve a invasão russa da Ucrânia e o fechar da torneira do gás natural que veio complicar as coisas para a Alemanha.
Depois do jogo é fácil falar, obviamente, mas foi uma decisão precipitada e feita com falta de conhecimento. As razões de Fukushima devem ser estudadas e analisadas para garantir que não aconteçam novamente. No entanto, as razões pelas quais aconteceram em Fukushima não significa que aconteçam em qualquer outra parte do mundo, muito menos nos reatores da Alemanha, cujos reguladores e qualidade da indústria eram consideradas as melhores do mundo. Fecharam por pressão social e política. Mas o próprio Japão está a reiniciar a energia nuclear, a reiniciar centrais e a começar a construir novas centrais. No caso da Ucrânia, houve Chernobyl, mas a Ucrânia continua com planos ambiciosos de construir mais nuclear. E porquê é que estes dois países, que sofreram com acidentes nucleares, querem continuar a investir? Isto seria algo para a Alemanha refletir. Ainda existe bastante apoio na Alemanha ao nuclear. A decisão foi mais sobre política e pressão social do que sobre segurança.
Quando fala em energia nuclear com outras pessoas, fora do seu meio profissional, com certeza que lhe referem os acidentes de Chernobyl e de Fukushima. Como lhes responde?
Em Portugal acontece muito referirem. Aqui em Inglaterra acontece muito menos. Já na Eslováquia, de onde é a minha namorada, não acontece de todo. Portugal é o extremo.
Na parte dos acidentes nucleares, tento explicar que nunca houve nenhum projeto de engenharia na história sem acidentes. Sejam aviões, sejam casas, sejam barragens. Há um exemplo que gosto de dar. As barragens são vistas como uma fonte de energia limpa, e são, mas também prejudicam o ambiente, como nos casos em que aldeias foram transferidas para as barragens encherem. E há até um caso extremo: o acidente de Banqiao na China em 1975. Uma barragem que era muito grande, sofreu um período de bastantes chuvas, a barragem cedeu, matou centenas de milhares de pessoas, 240 mil, se não me engano, e milhões ficaram sem casa. Foi um acidente terrível, completamente horrível e um dos piores acidentes de engenharia na história do mundo. Mas nunca ninguém olhou para um barragem e pensou: ‘não podemos construir isto porque aconteceu aquilo na China’. Pelo contrário, pensamos: ‘porque é que aconteceu? Como garantimos que não acontece de novo?’. Tal como nos acidentes de avião.
A energia nuclear segue exatamente a mesma lógica. E embora não haja nuclear recente na Europa, continua a ser uma das maiores fontes de toda a Europa: cerca de 25%, a par das barragens e gás natural. Na União Europeia nunca tivemos um acidente muito sério em 50/60 anos. Estamos a fazer as coisas bem, de forma segura.
Uma das vantagens apontada pelos defensores nucleares do nuclear são as emissões poluentes muito reduzidas. Isto significa que pode ser uma tecnologia que faça parte de um futuro com menores emissões na produção de eletricidade?
Sim, para substituir o carvão, é este o grande desafio. E já é reconhecido por todas as agências internacionais como a Agência Internacional de Energia (IEA), entre muitas outras, que o nuclear é essencial para reduzirmos as emissões de maneira sustentável e económica. Foi agora reconhecido no COP 28, pela primeira vez no mundo, que realmente o nuclear é essencial e temos de triplicar a quantidade. Realmente é uma fonte de energia que está a ser e vai ser essencial para o futuro. Nos países desenvolvidos, há uma transferência de carvão para o gás natural e isto vai ser um grande desafio, porque, em certas aplicações da indústria, gás natural ainda é bastante essencial. E até na parte de eletricidade, porque todos os países estão a construir energia renovável, que tem características voláteis. Por agora, o gás natural é o que basicamente mantém o nosso sistema estável.
Miguel, como sabe, uma das questões da energia nuclear são os resíduos. Vão continuar a ser um problema?
Os resíduos nucleares não são um problema. Ponto final. Para a indústria nunca foram. Estamos a gerir resíduos há mais de 60/70 anos, nunca houve um acidente. No início, não havia gestão nenhuma, atiravam os resíduos para o mar. Hoje em dia existem os geological disposal facilities (GDF), que é basicamente um grande buraco no chão. No caso de França são mais inovadores, querem reutilizar os resíduos para usar novamente como combustível para novos reatores. Mas o urânio é barato e não há muitas razões para reciclar este combustível.
Só para perceber uma questão qual é a sua visão do mix energético? Defende que o nuclear deva ser a maioria?
É preciso gerir o risco, por agora estamos a excluir a energia nuclear, o que é ridículo. A ambição atual é triplicar o nuclear que temos no mundo. Isto apenas fará com que o nuclear tenha um papel entre 15% a 20% da eletricidade. É uma pequena, mas generosa, parte. Mas todos os planos que fazem são apenas de energias renováveis e mais tarde virá o armazenamento e o hidrogénio. Não há gestão de risco nenhuma. As coisas podem correr mal e não haver hidrogénio, nem formas de armazenamento económicas. Podemos arriscar-nos um dia a ter a Europa novamente a sofrer por falta de gás, como aconteceu quando a Rússia cortou o gás. Embora tenhamos boas relações com a Nigéria e a Algéria, nada nos garante que não haja cortes de gás, seja por conflitos ou por decisão do país.
A energia nuclear, aliás, contribui para a segurança de abastecimento da Europa?
Sem dúvida. Nos debates em Portugal vejo a acontecer, erradamente, que dizem que se investirmos na energia nuclear ficamos dependentes do urânio. Mas veja-se o caso de França. O Níger era o seu maior exportador e, quando houve a revolta, pararam completamente com os envios. 75% do urânio de França desapareceu, mas o que é que França disse? ‘Não é problema, temos urânio suficiente para os próximos três a cinco anos’. Entretanto, começaram a falar com o Canadá e com a Austrália, que são o segundo e terceiro maiores exportadores de urânio. E também com os Estados Unidos. Como é muito denso, é fácil de armazenar. Mesmo que o teu exportador de repente decida cancelar o fornecimento, há tempo para encontrar um substituto.