Depois de um discurso apaziguador no dia 25 de Abril, de incentivo à tolerância, “de respeito pela diferença de pensamento, pela diversidade de ideias”, José Pedro Aguiar-Branco, presidente da Assembleia da República, “incendiou” o país logo no dia seguinte, em entrevista à Antena 1, ao ter defendido que Lucília Gago deve prestar explicações no Parlamento sobre os processos judiciais em investigação que provocaram crises políticas. Os magistrados do Ministério Público (MP) ficaram “perplexos” e “indignados”, os magistrados judiciais entendem ser preferível nem falar sobre o assunto, e os políticos voltaram a avivar as fraturas pré-existentes.
“Vai lá fazer o quê? Dizer o óbvio?” – questionou o juiz conselheiro António Bernardo Colaço ao ser interpelado pelo JE, esclarecendo que a Procuradora-geral da República (PGR) pode e deve ir sempre ao Parlamento prestar contas sobre a aplicação da LOIC [Lei da Organização de Investigação Criminal]”. Esta lei da AR estabelece bianualmente as prioridades da investigação criminal.
O magistrado oriundo do MP explicou, depois: “sobre estas matérias, nomeadamente sobre se tem meios, humanos e materiais, para aplicar a LOIC e para cumprir a missão que lhe reconhece a Constituição da República Portuguesa, que é a defesa da legalidade, a PGR deve ir ao Parlamento prestar esclarecimentos, embora seja nomeada pelo Presidente da República, sob proposta do Governo, e não pela Assembleia da República”. Mas, observou o juiz conselheiro, “ir para abordar processos judiciais sob investigação é tão inócuo como lavar-se em água do mar: porque iria simplesmente dizer que sobre processos em investigação não se pode pronunciar, ou seja, iria perder tempo para dizer o óbvio”.
Considerado um dos maiores especialistas em sindicalismo policial, o juiz conselheiro Bernardo Colaço, jubilado, lembra que um processo de inquérito apenas é declarado concluído depois de arquivado ou tornado acusação. Até esse momento, o MP pode atestar haver indícios de crime, o juiz de instrução criminal poderá achar que não, os juízes da Relações que decidem os recursos, poderão achar que sim ou que não, e depois ou se arquiva ou há julgamento. Até lá, é um processo de inquérito normal, em segredo de justiça, que permanece em investigação, quer envolva o mais anónimo dos cidadãos quer envolva um primeiro-ministro. Esta é a lei para todos, incluindo para a PGR”, atestou. Bernardo Colaço, juiz que exerceu funções em todos os graus da magistratura, alerta para o “perigo” de, “na espuma dos dias”, se colocar em causa um sistema que só funciona no respeito absoluto pela separação de poderes.
Aguiar-Branco é advogado há mais de 40 anos e já foi ministro da Justiça, tendo das leis um conhecimento abrangente. Neste sentido, sabe que seria inócuo ter a PGR no parlamento para falar sobre a Operação Influencer, o caso que resultou na queda do governo e na consequente realização de novas eleições legislativas. É o inquérito em curso que todos referem quando questionam a possibilidade de ouvirem os esclarecimentos da PGR.
“Aguiar-Branco foi na corrente dos comentadores”, ouve-se nos corredores das magistraturas, entendendo-se a alusão à PGR como “mais uma boca”, na mesma senda de pensamento dos dois anteriores presidentes da AR, do PS – Augusto Santos Silva e Fernando Ferro Rodrigues.
O presidente dos Magistrados do Ministério Público (SMMP), na mesma linha do juiz conselheiro, alertou igualmente para o perigo de “uma violação da separação de poderes”. Disse Paulo Lona que existe um "equilíbrio muito delicado" quando se chama e se sujeita a PGR a prestar explicações no parlamento, tanto mais que poderá existir a tentação dos deputados de fazerem perguntas sobre "factos concretos" em investigação.
Nesta linha, Paulo Lona entende que não faz sentido" a PGR ir ao parlamento para depois "não poder falar sobre factos concretos" de processos mediáticos que parecem estar na mira dos deputados.
Recorde-se que o presidente do SMMP já havia alertado para a tentação de os políticos pretenderem mexer na autonomia do MP. No discurso de tomada de posse, a 11 de abril, Paulo Lona foi perentório: “Mas, vamos ser muito claros, as dificuldades comunicacionais, as reais ou supostas falhas do MP e a alegada necessidade de maior escrutínio, não podem servir de pretexto para criar barreiras à investigação criminal (sejam elas de que tipo forem), nem para colocar em causa a independência do MP como organização e a autonomia interna dos seus magistrados, nem, tão pouco, para descaracterizar uma Magistratura de raiz constitucional, consolidada no nosso sistema de Justiça e elogiada internacionalmente.” E avisou: “Nenhuma instituição num Estado de direito está acima da crítica pública, tal como ninguém, nesse mesmo Estado de direito, deve estar acima de ser objeto de uma investigação criminal quando surjam em público factos que possam configurar a prática de um crime”. Paulo Lona recordou, depois, as palavras de Rui Cardoso, ex-presidente do SMMP, quando disse que “todos são defensores do Estado de direito até que este lhes bate à porta”.
Reações políticas
O tema tem suscitados várias reações. O Presidente da República disse que não comentava, frisando ser sua função "respeitar a autonomia do Ministério Público".
O ex-ministro das Infraestruturas, João Galamba, em entrevista à CNN, também foi claro: “Nenhuma instituição funciona fechada sobre si mesma, mas não considero que a ida da PGR ao parlamento faça qualquer sentido”. O também arguido no processo Influencer, considerou, no entanto, que “se entender que deve falar e explicar aos portugueses deve fazê-lo”.
Para o ex-bastonário da Ordem dos Advogados, a ida ao parlamento da PGR para falar sobre um processo que envolve políticos “parece uma ingerência totalmente inaceitável do poder político no âmbito do poder judicial”. Disse Menezes Leitão, em declarações à RTP: “Vejo com grande preocupação esse tipo de declarações nada saudáveis para a separação de poderes que é a base de qualquer Estado de direito democrático.”
Entretanto, BE, PCP, Livre e PAN defenderam a audição da PGR no parlamento sobre a atuação do MP, insistindo na necessidade de explicações, hipótese que o Chega considerou inadequada.
O presidente do Chega, André Ventura, disse ter ouvido “com alguma estupefação e preocupação as palavras” de Aguiar-Branco, considerando que o MP deve explicações e pode comunicar “de forma mais eficaz”, mas não através de uma vinda à AR.
Fabian Figueiredo, do Bloco de Esquerda, considerou que Lucília Gago deve explicações ao país e saudou Aguiar-Branco por se ter juntado a este apelo, salientando que “em 50 anos de democracia nunca se tinha assistido a episódio semelhante”.
O PCP disse aguardar que Lucília Gago se disponibilize a prestar esclarecimentos no parlamento sobre a atuação do MP e clarificou que os comunistas não vão avançar com nenhum requerimento mas também não vão inviabilizá-lo. O deputado António Filipe, no entanto, observou: “A autonomia do Ministério Público é um princípio basilar do Estado de direito democrático” que “deve ser respeitado.”
Pelo Livre, o deputado Jorge Pinto insistiu que a PGR deve explicações “aos deputados mas sobretudo ao país” e afirmou que o seu partido vai propor que o tema seja discutido em conferência de líderes de forma a perceber melhor o “âmbito desta chamada”.
No PAN, Inês Sousa Real considera que uma eventual audição da PGR “não belisca a separação de poderes”, até porque entende que as explicações são devidas.
Por parte da AD, por enquanto, não há comentários.
O PS também ainda não se pronunciou sobre a proposta de Aguiar-Branco, mas há cerca de uma semana, o líder do partido, Pedro Nuno Santos, tinha notado, a propósito da Operação Influencer, que é “matéria de gravidade suficiente para que sejam dadas explicações“.
“Ninguém está acima do escrutínio, ninguém está acima da crítica e ninguém está isento de ter de dar explicações em matérias com a importância que esta tem para a vida democrática do nosso país”, sublinhava Pedro Nuno Santos.
Feitas as contas, diante da realidade do parlamento, as palavras de José Pedro Aguiar-Branco foram mais um contributo para um ruido ensurdecedor que teima em fustigar Justiça, sem qualquer efeito prático.