Skip to main content

Novo Casal Ventoso? "Se não agirmos rapidamente, é certo que tudo se repete"

Coordenadora de associação que apoia toxicodependentes na cidade de Lisboa alerta que os consumos têm vindo a aumentar e que é preciso "agir agora" para que a história não se repita. Diz que faltam "mais apoios no terreno", assim como uma "atualização financeira dos que já existem e que têm vindo a fragilizar se cada vez mais". Elsa Belo sugere ainda o envolvimento "mais comprometido" da tutela nesse capítulo e a adoção de medidas "extraordinárias que permitam contornar aspetos burocráticos que têm impedido a celeridade de respostas".

Elsa Belo conhece Lisboa como as palmas das mãos. A Ares do Pinhal, uma Instituição Particular de Solidariedade Social (IPSS) criada em 1986, tem dois grandes projetos na área dos comportamentos aditivos na cidade e dá resposta, ao final do dia, a cerca de 1.600 pessoas. Em entrevista ao Jornal Económico, a responsável explica o que faz a Ares do Pinhal, diz que os apoios no terreno não chegam e alerta que é preciso "agir rapidamente" para evitar que zonas como a avenida de Ceuta se tornem numa espécie de novo Casal Ventoso.
 
Que papel desempenha a Ares do Pinhal em Lisboa?
A Ares do Pinhal desenvolve na cidade de Lisboa dois grandes projetos na área dos comportamentos aditivos. Um deles é programa de substituição opiácea de baixo limiar de exigência (programa de metadona), onde a proximidade aos consumidores e a facilidade de acesso ao programa através de unidades móveis, contribui para que seja uma resposta que capta as pessoas, que vai ao seu encontro e tenta trabalhar a sua estabilização contribuindo de forma clara para a melhoria das condições em que se encontram, e para a melhoria do estado de saúde individual e pública. O outro grande projeto é o Serviço de Apoio Integrado, situado na quinta do Loureiro (antigo casal ventoso). Trata-se de um Programa de Consumo Vigiado, com outras valências de apoio, como higiene, alimentação, cuidados médicos de enfermagem e psicossociais.
 
O consumo está a aumentar na cidade? A quantas pessoas prestam auxílio?
Em ambos os programas temos sentido de facto um aumento dos consumos e de toda a atividade associada. No programa de substituição temos atualmente cerca de 1.250 pessoas por dia em toda a cidade. No programa de Consumo vigiado, aberto há quatro anos, há um total de pessoas inscritas de 3.423, e é frequentado por cerca de 300 pessoas por dia, deixando à porta um número elevado de pessoas às quais não conseguimos dar resposta. Ao fim de um dia de trabalho podemos dizer que só a nossa organização tem contacto com aproximadamente 1.600 pessoas na cidade. Algumas com consumos ativos, algumas sem consumos ativos, mas todas elas em situação de vulnerabilidade de saúde e social.
 
Quais são as características dos novos consumos?
Não sei se poderemos afirmar que são novos consumos. Da experiência que temos, os consumos continuam a ser de heroína e cocaína base (craque). Não temos registo de outras substâncias consumidas, embora estejamos atentos. Somos da opinião de que todas as estruturas de devem preparar para a entrada de novas substâncias no mercado, desconhecidas e mais perigosas, com características muito mais agressivas e com um grau de severidade muito elevado. Refiro me às drogas sintéticas que já vão aparecendo em outros contextos, não tanto nos consumidores de rua, clássicos. É fundamental investir mais na testagem de substâncias para estarmos preparados para os novos consumos e criar respostas para evitar piores cenários.
 
Faltam apoios no terreno? Que medidas devem ser tomadas urgentemente?
Sim. Faltam efetivamente mais apoios no terreno e falta também a atualização financeira dos que já existem e que têm vindo a fragilizar se cada vez mais. Quer em termos do tempo e da disponibilidade para acolher as pessoas e os novos casos, quer em termos da fragilidade da intervenção em termos técnicos, em património técnico e humano.
 
Este assunto tem sido muito discutido quer com o Instituto para os Comportamentos Aditivos e as Dependências (ICAD) quer com a Câmara Municipal de Lisboa. Apesar de haver a plena consciência dessa dificuldade e o reconhecimento dessa necessidade, tem sido muito difícil contrariar esta tendência. O que está em causa é sempre o aumento do financiamento a estas intervenções que permita acompanhar o aumento do custo de vida, a retenção de técnicos especializados, a melhoria das condições de trabalho, etc.
 
Em termos de novas medidas que façam face ao problema, estão já mais do que identificadas e refletidas com as entidades reesposáveis. Passa pela criação de outros espaços de consumo, que permitem a entrada destas populações para o sistema que pode cuidar e proteger; passa também por criar respostas de emergência junto de focos de consumo mais descontrolados, que passa pela criação de medidas extraordinárias, que permitam contornar aspetos burocráticos que têm impedido a celeridade de respostas.
 
O problema tem sido devidamente valorizado?
Penso que sim. Tem sido muito discutido quer pelas instituições que atuam na área da Redução de Danos em Lisboa, quer pelas instituições que lidam com as consequências do fenómeno, entre as entidades com reponsabilidade na área dos comportamentos aditivos, Câmara Municipal de Lisboa, Juntas de Freguesia mais afetadas...contudo, não se tem conseguido evoluir muito, criar respostas novas ou criar as condições para uma maior eficácia da intervenção. Talvez faça falta envolver a tutela de uma forma mais comprometida com o financiamento necessário, porque tecnicamente temos tudo.
 
Muito se tem falado da avenida de Ceuta e do consumo a céu aberto naquela zona. Temem que este local e/ou outros se tornem espécie de Casal Ventoso?
Claro que sim, tememos e muito! Ares do Pinhal esteve no desmantelamento do bairro em 1997. Ninguém quer voltar a ver ou a viver o que se viveu ali. Na altura, foram chamadas a intervir algumas entidades  para fazer frente ao fenómeno: A Câmara Municipal de Lisboa chamou a intervir em parceria e num regime de emergência o Instituto da Droga e da Toxicodependência, as forças de segurança, as instituições de saúde pública e foram criados mecanismos de resposta rápidos para encaminhamento das pessoas que ali se encontravam. Funcionou! Hoje, temos esse know how e devemos refletir sobre isso, aprender com os erros e evitar a repetição dos mesmos. Se não agirmos rapidamente, é certo que tudo se repete. Agora é a hora.