O presidente da União das Misericórdias Portuguesas (UMP) avalia o impacto da subida do salário mínimo e alerta para a necessidade de aumentar os outros trabalhadores que têm sido engolidos pela subida gradual do salário mínimo. “Temos a nossa faixa de Gaza dentro de casa que é conseguir pagar no fim do mês os salários aos trabalhadores que tratam os idosos de uma forma digna”, salienta. Manuel Lemos afirma, nesta entrevista ao Jornal Económico, que cabe ao Estado assegurar a sustentabilidade das instituições do sector social. Num lar, a comparticipação atual do Estado numa fatura por idoso cujo valor médio ronda os 1.450 é de 523 euros. O compromisso pelo Governo é atingir os 50% no final da legislatura.
Numa entrevista à TSF disse que o aumento do salário mínimo em 2024 vai custar à entidade empregadora não 60 euros, mas 85, por trabalhador. Como chegou a este número?
Multipliquei os 60 euros por 14 meses, o que dá 840 euros, depois somei-lhe a taxa social única (22,3%) e acrescentei 1,2 para seguros por trabalhador, a seguir dividi por 12 e porquê 12!?... Porque nós, instituições, pagamos 14 meses, mas só recebemos 12 - isto é que dá um aumento de 85 vírgula qualquer coisa. Tão fácil como isso.
Não inclui nestes cálculos (e deveria) as instituições que trabalham por turnos, o que acrescentaria em média 15% a este número.
Mais 15%?
Sim, sim. O trabalho por turnos tem um acréscimo de 15%. Só não acrescentei porque não é em todas as instituições, mas há serviços, por exemplo, nos lares, que cada vez mais trabalham por turnos. Se somarmos esses 15%, estamos a falar, números redondos, de mais 12,22 euros, o que no total dá quase 100 euros... Não 85, mas 100 euros! O impacto é brutal. Como vê não são contas à toa, acabo de explicar-lhe como lá cheguei para que veja o rigor que pus nisto… e nem sequer meti os 15%, embora com consciência de que há muita gente que prefere o trabalho mínimo no sector social por turnos.
Quantos lares existem em Portugal?
Não tenho os dados todos, porque há muitos lares privados, mas, grosso modo, o número andará à volta dos 3000 e tal. A Segurança Social sabe o número exato. Há os lares das misericórdias, os lares das IPSS (Instituições Privadas de Solidariedade Social), os lares das mutualidades, os lares das cooperativas e, depois, há também os lares privados. Mas, atenção, não é só dos lares que eu estou a falar.
De quantos trabalhadores estamos realmente a falar?
Os lares são apenas uma parte. Falar do sector social é falar no universo das pessoas que trabalham nas respostas sociais, na rede cuidados continuados e noutros serviços que as misericórdias expressam. Em todo este mundo há gente paga com o salário mínimo e todos eles vão ser impactados. Cingir-nos apenas aos lares é ser muito minimalista.
Há 300 mil trabalhadores no sector da economia social, segundo dados recentemente divulgados pela ministra Ana Mendes Godinho e seguramente muitos deles estão no salário mínimo. Mas não é tudo. O salário mínimo não é o único problema que nos aflige. Não se pode somente aumentar o salário mínimo, porque senão estamos a aumentar o número de pessoas que auferem o mínimo.
Nesse aspeto os sindicatos têm razão. O aumento do salário mínimo tem engolido as tabelas salariais e isso a nós, no sector, não nos parece bem. Nunca dissemos que não queríamos pagar, o problema é que há uma Responsabilidade Constitucional — a resposta da Saúde, a rede nacional de cuidados continuados, a resposta do Ministério do Trabalho da Solidariedade e da Segurança Social — que cabe ao Estado. O sector social coopera com o Estado no desenvolvimento dessas respostas, portanto, o Estado tem de nos financiar. Porquê? Porque apesar de tudo, apesar dos preços, apesar dos custos estarem a subir, nós trabalhamos, diria, melhor e mais barato do que o Estado. Portanto, como trabalhamos melhor e mais barato, o Estado faz sempre, entre aspas, um bom negócio quando contratualiza connosco. Mas se contratualiza connosco tem de pagar minimamente, tem de assegurar a nossa sustentabilidade se não, não há resposta e sem essa resposta, como se faz a proteção social…!?
Resumindo.
O que nós dizemos é o seguinte: o Estado subiu o salário mínimo, ainda bem, aplaudimos, achamos que é uma boa ideia, mas tem que nos pagar o impacto do salário mínimo.
Dizia atrás que não se pode somente mexer no salário mínimo
O impacto do salário mínimo não são só os 85 euros a mais, há implicações nas outras categorias profissionais. Temos pessoas com 10 e 15 anos de casa que com estes aumentos sucessivos vão receber praticamente o mesmo que um indivíduo que entrou ontem, o que não é justo. Por isso, digo, é necessário olhar não só para o impacto direto do salário mínimo, mas também para o impacto que esse aumento causa nas tabelas salariais, ou seja, será necessário aumentar esses salários para que as pessoas não sejam engolidas pelo aumento do salário mínimo.
Já avaliou o impacto tudo isto em termos gerais?
Não tenho essa conta ainda, estou a pedir aos meus serviços que apurem, mas posso dizer-lhe que estamos a falar de milhões de euros. É muita gente, muita gente. Em muitas profissões, estamos a fazer outsourcing com os privados, mas também eles, vão, deve dizer-se assim, ter que fazer face ao impacto do salário mínimo. Há uma articulação em cadeia, eu percebo que o Governo tenha pensado nela, mas no nosso caso concreto o impacto é global.
Atualmente, quanto custa cuidar de um idoso numa instituição?
Vou dar-lhe um valor médio. Vamos supor que um idoso custa, entre 1.450 /1.500 euros por mês, no final de 2023, é preciso ver quanto é que o Estado comparticipa nisto.
E quanto é?
Neste momento, comparticipa 523 euros.
Menos de metade do custo real…
A comparticipação do Estado andará na casa dos 34%, mas só em março com as contas das instituições apuradas teremos o número exato, até lá tratam-se de projeções. Estamos convencidos que, em média, com os aumentos deste ano, houve alguma recuperação sobre os 34% e admito que haja instituições que trabalham um bocado mais barato que os 1.450 euros, que referi, em termos médios, tanto é assim que o próprio Estado nos paga por uma alta hospitalar 1.400 euros. O Estado tem a consciência de quanto é que nos custa essa alta hospitalar, de quanto é que custa cuidar bem das pessoas.
O Estado tem de aumentar a compensação?
Tem obrigatoriamente, claro, claro. Daí este meu grito de alerta público … Eu sei que está toda a gente preocupada com a guerra, eu também me preocupo, mas temos a nossa faixa de Gaza dentro de casa que é conseguir pagar no fim do mês os salários aos trabalhadores que tratam os idosos de uma forma digna, os idosos que durante tantos anos trabalharam para nós, os nossos pais, os nossos tios, os nossos amigos mais velhos que hoje estão nos lares. Portanto, temos que cuidar bem deles e ao cuidar deles, temos que perceber o que é que custa. Custa dinheiro.
Às vezes noticiam-se histórias.
Sabemos que há muitos lares ilegais em Portugal, toda a gente sabe, e nós sabemos melhor do que os outros, como calcula, mas distingo dois tipos: os lares que não são licenciados, porque o Estado também é, às vezes, excessivo na suas exigências, e os lares que não podem ser licenciados porque são verdadeiros tugúrios, onde as pessoas não são tratadas como o mínimo de dignidade e são mesmo vítimas de maus tratos e onde é preciso que o Estado intervenha.
Qual deverá ser o aumento da comparticipação?
É preciso que o Estado nos comparticipe de uma maneira digna. Em 2021 assinámos um compromisso com o Estado português em que o Estado, nas respostas da cooperação, aceitava pagar no mínimo 50%. Estamos atualmente nos 34%-35%, muito longe, portanto, dos 50%.
A meta desse compromisso é quando?
É um compromisso até ao fim da legislatura, um compromisso do Governo e nós acreditamos nas pessoas. Mas para que isso possa acontecer, de cada vez que o Estado nos aumenta a despesa tem de nos aumentar a comparticipação. Tem de fazer um aumento mais um pouco para caminharmos no sentido da recuperação prevista.
Quanto?
Para termos em 2024 um aumento real da compensação e continuarmos a caminhar para a meta dos 50%, o Estado terá que fazer um aumento na casa dos dois dígitos. Se é 11%, 12%, 13%, neste momento, não lhe sei dizer, mas dois dígitos é seguramente.
Do que conhece, do que leu da proposta do Orçamento do Estado para 2024 como avalia o documento? Como trata o terceiro sector?
Está tudo muito vago. Nem é bom nem é mau, acomoda tudo. É verdade que nos últimos anos aconteceu uma coisa muito interessante: Normalmente negociávamos de um ano para o outro — porque havia uma enorme previsibilidade e estabilidade na inflação, podíamos discutir se a taxa era razoável ou não era, mas o aumento era previsível, mais ponto menos ponto desde que a taxa de inflação se mantivesse no mesmo registo. E quase não havia juros bancários —, atualmente, somos quase obrigados a aumentos dentro do próprio ano.
No ano passado, houve meses em que os alimentos aumentaram 23%, repare o impacto desse número numa instituição no mês em que acontece e nos meses seguintes. Não é mais possível, enquanto a situação mundial se mantiver — embora nem Israel nem o Hamas sejam produtores de petróleo, a verdade é que ali ao lado são e pode haver, de repente, uma subida do preço do petróleo que não está prevista nestas contas que estamos para aqui a fazer. Não estamos a contar com esse fator. Vagamente as pessoas dizem, o preço dos combustíveis vai subir, mas vai subir quanto…!? Subir 5% ou 10% ou 15% é completamente diferente. Nessa medida, até é bom que o Orçamento não seja muito claro. O que é preciso é que quem faz o Orçamento tenha consciência do que está em causa e o que está em causa é uma gestão quase diária, mensal, pelo menos, da situação. Não olho para isto como necessariamente mau, é um bocado fruto da circunstância internacional em que vivemos. Há muitos fatores que o Governo não controla. Não vale a pena estarmos a bater no Governo porque se fosse outro era exatamente a mesma coisa.
Que outros problemas afetam as misericórdias, em particular, e o terceiro sector em geral?
Estamos a deparar-nos com uma falta consistente de recursos humanos. Há dias dei uma volta pelo Alentejo e, em média, as misericórdias já tinham pessoas de seis nacionalidades diferentes. Isto é uma mancha que se vai alastrar pelo país inteiro e que é assim um pouco por todo o lado em função da própria natalidade. Como sabe, andamos há 20 anos a baixar a taxa de natalidade e as pessoas tinham nessa altura 20 anos são os que estão agora a trabalhar…
Vai ser uma nova realidade termos de recorrer a pessoas de outras nacionalidades, o que, por vezes, em alguns aspetos condiciona a própria formação, uma vez que são pessoas que vêm com outra formação e têm outra cultura. Há uma grande diferença entre as pessoas do Leste da Europa e da América Latina e África. Assistimos a uma transformação cultural que é muito importante. Por outro lado, o trabalho em alguns sectores é muito pesado, muito pesado. Toda a gente gosta de tratar de crianças e há grande mobilização, mas tratar de idosos, fazer higiene, cuidar das pessoas, protegê-las é mais difícil e exige muita formação. Em certas áreas empresariais, por exemplo, na agricultura para apanhar fruta, a nacionalidade tem pouca importância, mas conversar com uma pessoa idosa que tem dificuldade coloca-se, logo, à partida o problema da língua. Há questões culturais que nós os dois aqui a conversar somos capazes de compreender, mas no terreno são mais difíceis de ultrapassar.
Para concluir, que outros problemas destacaria aqui?
Já falamos da sustentabilidade em geral, mas deixe-me que lhe diga que associo o problema da sustentabilidade a duas outras questões: a previsibilidade e a estabilidade.
Portugal não pode andar sempre a mudar. Se prevermos que daqui a cinco anos vamos ter mais 20% de pessoas muito idosas, então, temos que nos preparar hoje, não é daqui a cinco quando a onda já chegou à praia. Há necessidade de prever e de ter alguma estabilidade. Hoje os nossos lares, os nossos serviços já têm grande qualidade. Não estamos mal no contexto europeu e mundial, não tenhamos essa dúvida, em algumas coisas até estamos melhor. Justamente por isso é que não vale a pena andar sempre a mudar. Já nos basta a imprevisibilidade e a instabilidade à volta. As coisas têm que ter uma certa previsibilidade e alguma estabilidade e isso é fundamental para chegarmos à sustentabilidade.