O sector aeronáutico mundial não vive somente de transportar passageiros. Esta é a face mais visível do negócio, obviamente, mas há toda uma indústria a jusante que deverá gerar 124 mil milhões de dólares (117 mil milhões de euros) anuais daqui a 10 anos.
Memorize esta sigla: MRO - é o mercado de Manutenção, Reparação e Revisão. Só este ano terá gerado 104 mil milhões de dólares (98 mil milhões de euros), segundo previsões da Statista. O segmento dedicado só à parte de reparação e manutenção de motores que pesou 48% no mercado este ano e deverá disparar 26% até 2034 e pesar 63 mil milhões de dólares nos 124 mil milhões totais.
Portugal vai entrar agora na rota deste valioso mercado global. A Lufthansa Technik (LT) vai abrir uma unidade industrial em Santa Maria da Feira, distrito de Aveiro, com 54 mil m², anunciou a empresa na segunda-feira. A companhia que pertence à transportadora aérea alemã Lufthansa vai criar mais de 700 postos de trabalho na fábrica de reparação de peças de motores e componentes de aviões.
O investimento anda na ordem das centenas de milhões de euros, segundo a empresa, que rejeitou avançar o valor.
O ministro da Economia rejeitou na segunda-feira que este investimento esteja ligado à privatização da TAP (a Lufthansa já mostrou o seu interesse).
No mundo do MRO, o mercado norte-americano é o que gera mais negócio: 24 mil milhões de dólares, com a Europa Ocidental a surgir na segunda posição, com 21 mil milhões de dólares.
A maior empresa do sector é a General Electric Aviation (com receitas de 32 mil milhões de dólares), mas fabrica motores, tal como outras empresas relevantes do mercado MRO (CFM International e Rolls Royce). A LT assume-se como a maior empresa mundial independente do sector.
"Basta ver os resultados do grupo TAP para perceber que existem outros ramos do negócio da aviação mais fáceis para se fazer dinheiro do que propriamente a transportar passageiros. A TAP Manutenção e Engenharia é o sector onde a TAP teve um aumento de receita percentual maior", disse ao JE Pedro Castro, especialista em aviação, acrescentando que o próprio CEO da empresa disse recentemente que este era "um dos eixos do futuro para alavancar os resultados e perícia do grupo TAP".
"A Lufthansa Technik é uma unidade autónoma do grupo Lufthansa que goza de uma excelente reputação e uma vasta carteira de clientes. Tem várias localizações espalhadas pelo mundo e com diferentes especializações, como Filipinas, Budapeste, Sofia, Malta, Shannon, etc. É muito relevante trazermos este tipo de ramo desta indústria para Portugal, cria um outro tipo de emprego e de especialização que ajuda a alguma diversificação. A nível governativo é importante que este investimento não crie nenhuma preferência ou obrigação em sede da privatização da TAP (companhia aérea) porque são negócios totalmente diferentes", segundo o consultor e diretor da SkyExpert.
Quem é a Lufthansa Technik?
Detida unicamente pelo grupo Lufthansa, que em 2023 recuou na sua intenção de abrir o capital da companhia, as suas receitas subiram 18% em 2023 face a 2022 para mais de 6.500 milhões de euros, um valor recorde. Deste valor, cerca de um terço teve origem no grupo Lufthansa com dois terços a terem origem em clientes externos.
Com um EBTIDA Ajustado de 785 milhões de euros, mais 7% face a período homólogo, a LT contava com quase 23 mil trabalhadores em todo o mundo no final do ano passado.
A companhia intitula-se a "o maior fornecedor mundial independente [fora as empresas que pertencem a fabricantes aeronáutico] de serviços de MRO para aviação civil comercial".
Conta com 30 fábricas em todo o mundo e com participações diretas e indiretas em 64 empresas, contando com mais de 800 clientes, entre fabricantes de aviões, empresas de leasing, operadores de jatos privados, governos e forças armadas.
O resultado recorde obtido em 2023 deveu-se à "forte procura por voos, o que levou a um aumento da procura por serviços de manutenção e reparação".
O recorde foi obtido "apesar de dificuldades na cadeia de abastecimento, aumento dos custos de material e com pessoal e um ligeiro recuo no dólar".
No ano passado, a empresa lançou um programa crescimento com o nome de "Ambition 2030" para manter a sua "posição de liderança global, mesmo sem ter um novo acionista a bordo".
A empresa espera "que a "procura por serviços MRO permaneça elevada, especialmente para motores. Além do aumento de motores a envelhecer em operações em todo o mundo, isto deve-se a uma maior intensidade de manutenção dos novos desenvolvimentos de motores".
O "Ambition 2030" prevê um "maior gasto de capital para expandir o negócio principal, bases adicionais e uma maior presença internacional, potencialmente através de aquisições, assim como a expansão de modelos de negócio digital".
A procura por pessoal é elevada, com mais de 220 novos trabalhadores a juntarem-se à empresa só na Alemanha.
A companhia desenvolveu uma tecnologia com a empresa química BASF conhecida por AeroShark,que imita a pele de tubarão, que é "particularmente hidrodinâmica, assim otimizando as aerodinâmicas de áreas relevantes do avião, consumindo menos combustível", que reduz o consumo de combustível em 1%.
A companhia planeia equipar mais de 100 aviões da Boeing 777 om o AeroShark nos próximos anos, esperando obter aprovação para equipar os Airbus A330 e A320neo e também o Boeing 737.
Em 2023, 15 aviões receberam esta tecnologia para tornar a aviação mais sustentável no futuro.
A companhia também quer avançar no hidrogénio e tem planos para converter um A320 para poder pesquisar esta tecnologia.
Em relação a contratos, conseguiu 27 novos clientes em 2023, com mil novos contratos fechados num total de 8 mil milhões de euros, com 3,1 mil milhões a serem assinados com companhias do grupo Lufthansa.
"Isto inclui novos contratos de longo prazo para fornecer componentes estratégicos a diversas companhias", incluindo a Hawaiian Airlines, para fornecer peças a 52 aviões Airbus nos próximos sete anos, com esta operação a marcar a sua entrada nos serviços MRO para aviões da Airbus nos EUA. Também renovou contratos com a Emirates para o Airbus A380.
A nível tecnológico, a Lufthansa Industry Solutions, que pertence à LT, "desenvolve soluções inovadoras para mais de 300 empresas nos sectores da aviação, indústria, logística e transportes" tendo expandido os seus serviços para a inteligência artificial em 2023.
A companhia expandiu-se para o sector da defesa, tendo vencido um dos contratos para a manutenção dos novo F-35 da Deutsche Luftwaffe, a força aérea alemã. Está também envolvida no projeto Pegasus da Força Aérea Alemã para fornecer a nova aeronave de reconhecimento e patrulha da Luftwaffe. É também parceira da Boeing para fornecer o novo transporte de helicóptero pesado Chinook, operado pela Luftwaffe. Há mais de 60 anos que providencia serviços à German Special Air Mission Wing que tem vários aviões para servir o Estado alemão com o transporte de políticos, pessoal e material.
"Algo realmente grande será criado aqui"
A Lufthansa Technik disse na segunda-feira que "tem objetivos de crescimento ambiciosos e queremos continuar a expandir a nossa posição de liderança como líder de mercado global no sector MRO [manutenção, reparação e revisão] no futuro. É por isso que já estamos a começar a ampliar as nossas capacidades, acrescentando localizações estrategicamente importantes à nossa rede global e garantindo assim que podemos continuar a satisfazer, no futuro, as expetativas dos nossos mais de 800 clientes internacionais da melhor forma possível. Estamos convencidos de que encontrámos o local ideal em Santa Maria da Feira. Algo realmente grande será criado aqui – para a região, para a Lufthansa Technik e para os nossos colaboradores e clientes. Este investimento é também um sinal do compromisso do Grupo Lufthansa com Portugal”, disse em comunicado Harald Gloy da Lufthansa Technik.
O comunicado não revelou o valor de investimento previsto e destaca que a “cooperação com o Governo português, representado pela AICEP (Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal), e com a câmara municipal de Santa Maria da Feira foi particularmente profícua – ambas as instituições deram um grande apoio à Lufthansa Technik num processo muito intenso”.
Já o ministro da Economia Pedro Reis disse que este é “mais um passo para a reindustrialização do nosso país e representa a confiança nas nossas infraestruturas e na nossa mão de obra, especialmente nos nossos engenheiros altamente qualificados do setor da aviação. Mostra também que estamos no bom caminho para atrair investimento estrangeiro que ajudará a impulsionar a economia portuguesa. Portugal e a Alemanha, em conjunto, através de projetos estratégicos e alianças como esta, podem ajudar a Europa a acelerar o seu crescimento sustentável rumo a um futuro brilhante para as nossas economias e empresas”, afirmou em comunicado.