No mesmo dia em que, ao que tudo indica, a ponte que liga a península da Crimeia à região russa de Krasnodar voltou a ser alvo de um ataque (novamente não reivindicado) por parte da Ucrânia ou de elementos ligados à Ucrânia, a federação russa anunciou que o chamado Acordo de Cereais não é para manter. Os acordos do Mar Negro foram efetivamente encerrados esta segunda-feira, uma vez que a parte do acordo relativa à Rússia não foi cumprida, disse o porta-voz da presidência russa, Dmitry Peskov, citado pela imprensa do país.
"Os acordos do Mar Negro não estão mais em vigor. O prazo, como disse o presidente russo antes, era 17 de julho. Infelizmente, a parte do acordo do Mar Negro que diz respeito à Rússia ainda não foi cumprida. Como resultado, foi encerrado", disse. "Assim que a parte russa [do acordo] for cumprida, o lado russo regressará imediatamente à implementação deste acordo", acrescentou Peskov, que recordou que a posição da Rússia sobre a suspensão da sua participação no acordo dos cereais foi anunciada antes “do mais recente ato terrorista na Ponte da Crimeia e este ataque não influenciou a decisão de Moscovo”.
Em 22 de julho de 2022, um pacote entendimentos sobre o fornecimento de alimentos e fertilizantes para o mercado internacional foi assinado em Istambul. Os acordos foram originalmente celebrados por um período de 120 dias e foram prorrogados pelo mesmo período em novembro do ano passado. Em 18 de março de 2023, a Rússia anunciou a extensão do acordo por 60 dias e finalmente por mais dois meses em 18 de maio.
O último navio cargueiro a navegar ainda sob o acordo deixou a Ucrânia no domingo passado e atravessou o Mar Negro a partir do porto de Odesa em direção à Turquia, conforme indica o site Marine Traffic. Embora as exportações russas de cereais e fertilizantes não estejam sujeitas às sanções ocidentais impostas após a invasão da Ucrânia, Moscovo tem insistido que as restrições a pagamentos, a logística e o segmento dos seguros representaram uma barreira aos embarques. Uma das principais reivindicações russas – exatamente aquela que agora bloqueou mais uma extensão do acordo – tem sido que o banco agrícola russo Rosselkhozbank seja ligado ao sistema de pagamentos internacionais SWIFT. Os bancos russos foram retirados do Swift pela União Europeia em junho de 2022, mas os russos afirmam que precisam dessa ligação para que o acordo dos cereais possa ser mais flexível. O lado ocidental teme que a ligação ao SWIFT possa ser uma escapatória de empresas e indivíduos russos às sanções impostas pelos Estados Unidos e seus aliados.
Moscovo afirma ainda que uma parte dos cereais que saem pelos Dardanelos nunca chega aos países que verdadeiramente precisam deles, mas a ONU tem contestado essa informação. A ONU argumenta que o acordo beneficiou os Estados mais pobres e a reduzir os preços dos cereais nos mercados globais em mais de 20%. O Programa Mundial de Alimentos (PMA, da ONU) adquiriu em 2023 80% do trigo sob sua gestão à Ucrânia, contra 50% em 2021 e 2022. E enviou cerca de 725 mil toneladas cúbicas do trigo ucraniano para o Afeganistão, Sudão, Djibuti, Etiópia, Quénia, Somália e Iémen para combater a fome. A organização disse que o acordo forneceu até agora cereais para 45 países em três continentes – 46% na Ásia, 40% na Europa Ocidental, 12% em África e 1% para a Europa Oriental.
Entretanto, várias capitais alinharam na pressão sobre Moscovo para que o país retome o acordo. O chanceler alemão, Olaf Scholz, disse que a recusa da Rússia em estender o acordo "envia uma mensagem negativa" para o resto do mundo. "Mas todos entendem o que está por trás disso, ou seja, uma ação que tem muito a ver com o facto de a Rússia não se sentir responsável pela boa convivência no mundo", acrescentou, Scholz à margem da cimeira da União Europeia com os países da América Latina, em Bruxelas.
O secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse que "lamenta profundamente" a decisão da Rússia e acrescentou que estava dececionado com o facto de o presidente russo, Vladimir Putin, ter ignorado a sua proposta de estender o acordo do Mar Negro. Guterres destacou que a ONU ainda tentaria facilitar "o acesso desimpedido aos mercados globais de alimentos e fertilizantes da Rússia e da Ucrânia".
Bem menos alinhado, como seria de esperar, o representante da China nas Nações Unidas, Zhang Jun, também expressou esperança de que todas as partes envolvidas possam encontrar o caminho do entendimento: "ainda esperamos que, acomodando as preocupações de todas as partes, poderemos encontrar uma solução", disse.