Do ataque israelita ao consulado do Irão em Damasco, capital da Síria, resultaram sete mortos. De uma noite de retaliação do Irão sobre Israel ao longo de várias horas e com o recurso ao lançamento de centenas de drones e mísseis não resultou nenhuma morte. É difícil não se concluir que isso foi um verdadeiro statement do regime iraniano – que poderia ter agido promovendo um verdadeiro morticínio, mais próximo do que está a passar-se em Gaza, onde já morreram 33 mil palestinianos e uma mão cheia de israelitas.
Para André Pereira Matos, analista e investigador da Universidade Aberta, é fundamental que esse ponto seja realçado. Em entrevista ao JE, salienta que a comunidade internacional – que tem sobre estas matérias “dois pesos e duas medidas” – foi excessivamente contida em denunciar a ilegalidade do ataque em Damasco, a 1 de abril. Talvez o direito à defesa não sirva a todos os Estados pela mesma medida.
Agora, a grande dúvida que se coloca é perceber-se que retaliação fará Israel à retaliação iraniana. A escalada para uma guerra aberta entre os dois inimigos de sempre é ainda uma forte possibilidade. A comunidade internacional – que se multiplica em reuniões urgentes (o G7, a ONU, a União Europeia e todas as outras de que não há notícia – tenta convencer Israel a responder com equivalência de força, num quadro em que não há mortes a registar entre os seus cidadãos.
Internamente, os ultras religiosos e a extrema-direita pedem uma ação apocalítica que tenda a fazer desaparecer os persas da crosta terrestre. Mas também há, como salienta Pereira Matos, quem exija contenção – num quadro em que a comunidade internacional está a perder a paciência com o regime judeu e os Estados Unidos vacilam em manter a sua tradicional postura de apoiar antes e perguntar depois – mesmo que o ‘depois’ seja contar os mortos.
De qualquer modo, os próximos dias serão de forte tensão – que se manterá até o mundo ficar a perceber qual será a retaliação engendrada por Israel. Adiante se verá se os pedidos de contenção – que até agora e desde 7 de outubro são sistematicamente inaudíveis para o governo israelita – merecem do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu alguma atenção.
Consegue antecipar que tipo de retaliação israelita se seguirá à retaliação iraniana pelo ataque de Damasco?
Há uma grande pressão internacional para que Israel contribua para uma não escalada da tensão, até pela dupla postura do Irão: agressiva por um lado, mas por outro lado preocupou-se em manter abertos os canais políticos e diplomáticos, Fez avisos prévios ao ataque para haver deslocação de civis, avisou que tipo de ataques iriam acontecer – nomeadamente aos Estados Unidos. Há inclusivamente informação não confirmadas que tudo foi feito com o acordo dos Estados Unidos.
Houve uma decisão de contenção por parte do Irão?
O Irão não quis perder a face perante um ataque explícito ao seu território – convém não esquecer que o direito internacional diz que as representações diplomáticas são equivalentes ao território dos Estados. O Irão, não querendo perder a face – e isso é uma ironia – porque apelou às organizações internacionais desta ordem internacional liberal para que houvesse uma condenação pela violação do direito internacional por parte de Israel ao atacar a embaixada de Damasco [na Síria, a 1 de abril]. E isso não aconteceu. O Conselho de segurança das Nações Unidas não aprovou uma resolução nesse sentido. E as condenações políticas foram muito retóricas, pouco assertivas, nem sequer foram publicamente muito visíveis. O Irão, atendendo à relação tensa que tem com Israel, entendeu que devia fazer uma retaliação.
Israel costuma ouvir pouco o que lhe diz a comunidade internacional.
Atendendo a este contexto e ao facto de haver uma grande pressão internacional sobre Israel, ainda assim é possível que Israel vá retaliar – ninguém sabe como. Até porque o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu tem muitas vezes ignorado os pedidos e as exigências dos Estados Unidos. Há inclusivamente uma grande pressão do ponto de vista interno sobre Netanyahu para que não esteja a fragilizar tanto a aliança com os Estados Unidos, fundamental para Israel, nomeadamente nestes momentos mais tensos. Há até internamente algumas elites que estão a pedir para que haja contenção por parte de Israel.
Essa questão interna pode ser decisiva?
Sabemos que há muitos radicais dentro do próprio governo de Netanyahu – a começar pelo próprio e continuando por alguns ministros com importantes posições na hierarquia do governo israelita. Diria que é provável que haja alguma retaliação, ainda que ela vá ser muito mais contida que aquilo que Netanyahu desejaria – exatamente por causa da conjugação da pressão internacional e da pressão interna. E porque isso permitirá a Israel ganhar vantagem em relação à situação de Gaza.
É preciso notar que o Irão fez tudo o que podia para que não houvesse mortos, o que aparentemente conseguiu.
Exatamente. As palavras de Joe Biden foram até dizer que a retaliação do irão foi uma retaliação calibrada – os Estados Unidos e Israel foram informados atempadamente do tipo de ameaça, dos locais visados, etc.. O Irão demonstrou a maior boa-vontade possível em relação a toda esta situação.
Deixando explícito a Israel que, se quisessem, poderiam ter feito um morticínio tremendo.
Claro que sim. Sabemos que Israel tem uma grande capacidade de defesa, mas o Irão tem meios muito mais letais que aqueles que utilizou – se os usasse, isso seria uma escalada imensa, mas não o fez deliberadamente. O tipo de ataques utilizados, são ataques que Israel pode defender facilidade – tendo investido muito dinheiro, nomeadamente na chamada Cúpula de Ferro.
Diria que o Irão pretendeu explicar à comunidade internacional que “nós não somos tão maus como o Estado hebraico”?
Exatamente. Por isso é que eu dizia que tudo isto é uma ironia. É um tempo cheio de contradições. Repare: temos a Nicarágua, um Estado autocrático, a apresentar uma queixa no Tribunal Internacional de Justiça contra a Alemanha por apoiar um Estado genocida, e temos o Irão – um pária do sistema internacional, um Estado que não se identifica com esse sistema – a explicar “vocês que criaram este sistema, estas normais, estas regras, estão a viola-las e nós queremos apenas o cumprimento do direito internacional”. O Irão quer que haja pelo menos uma condenação pela utilização excessiva de força. A comunidade internacional não o fez, demonstrando mais uma vez que tem dois pesos e duas medidas.
Acha que a comunidade internacional vai desta vez fazer esse reconhecimento?
Não. Pelas reações dos líderes políticos, ainda não pararam os apoios públicos a Israel, novamente sem nenhuma menção à questão da embaixada.
No meio de toda esta crise, que papel para a Rússia?
O que se passa no Médio Oriente tem a ver com todos os países do mundo – já estamos a ver as bolsas de valores em queda, mais interrupções nas cadeias de abastecimento… Um fenómeno destes tem impacto em todos os Estados – dependendo da dimensão que vier a ter. Sabemos que a Rússia tem aliados no Médio Oriente, e depois há um impacto indireto por via de se questionar a legitimidade dos Estados Unidos. A pressão dos mercados trará vantagens para a Rússia.