Lançaram recentemente o ebook "Como transformar o potencial das ULS em realidade?". Qual o seu objetivo?
O objetivo deste guia é motivar as administrações das ULS a aproveitarem o ímpeto da criação deste novo modelo organizacional para promover uma maior integração dos cuidados, com uma melhor articulação entre diferentes serviços e entre os cuidados hospitalares e cuidados de saúde primários, com uma maior ênfase no papel ativo que o doente tem de ter nestes processos.
No fundo, procuramos com este guia partilhar um conjunto de ideias e boas práticas que facilitem o trabalho de quem está a liderar esta transformação, realçando os temas mais críticos para o seu sucesso, como o envolvimento ativo das lideranças clínicas, das equipas e dos doentes, mas principalmente como implementar uma nova cultura de inovação clínica e de gestão, que permita repensar a forma como prestamos cuidados de saúde.
Porquê lançar este ebook em parceria com a Associação Portuguesa de Administradores Hospitalares, a Associação Nacional das Unidades de Saúde Familiar e a Portuguese Association for Integrated Care?
A fusão de vários níveis de cuidados nas ULS é um dos fatores mais relevantes para o seu potencial sucesso, mas também uma das barreiras mais críticas a ultrapassar. Temos agora diferentes culturas de trabalho juntas numa mesma estrutura e é fundamental começar a quebrar silos e estabelecer pontes de proximidade e colaboração, que facilitem e promovam o trabalho de articulação e integração de cuidados pretendido.
Nesse sentido, acreditamos que era importante que este guia reforçasse também esta mensagem de colaboração e de compromisso num caminho conjunto em torno de ideias e visões partilhadas. Fez todo o sentido então incluir aqui as associações representantes das USF (USF-AN), dos administradores hospitalares (APAH) e da integração de cuidados (PAFIC), a quem também agradecemos pela prontidão em abraçar esta iniciativa e em contribuírem com várias sugestões e ideias para acelerar esta transição.
O processo de mudança das ULS arrancou em janeiro. Já se passaram cinco meses. Têm obtido feedback de como está a correr?
É importante realçar que este processo de mudança exige tempo e que os seus resultados demorarão a surgir, uma vez que uma das premissas do novo modelo é uma maior aposta na gestão da saúde a longo prazo, procurando aumentar o foco no valor em saúde fornecido às populações (anos de vida saudáveis), retirando o foco exagerado da produção (mais consultas e cirurgias).
Mesmo assim, de certa forma, esta transformação abriu um pouco as portas à inovação, vendo-se as equipas das ULS a testar e implementar novas iniciativas com entusiasmo, focadas na criação de percursos do doente integrados, melhorar a articulação entre equipas hospitalares e cuidados de saúde primários, entre outros.
Apesar disso, a transição tem apresentado diferentes ritmos em diferentes instituições. Na generalidade, findo tão pouco tempo após esta alteração, é normal que os aspetos inicialmente abordados se foquem nos aspetos mais estruturais associados às fusões de equipas, seleção de novas lideranças, novos locais de trabalho, novos procedimentos, entre outros. Esperamos que o processo continue e ganhe ainda mais força nos aspetos relacionados com a inovação clínica e reorganização e melhoria dos percursos de prestação de cuidados.
A nova ministra da Saúde é crítica da gestão das ULS, inclusivamente pediu à Direção Executiva para explicar a reforma. A reversão pode ser uma possibilidade?
Sem dúvida que a conjuntura política atual, com vários pontos em aberto em relação ao futuro, condiciona os próximos passos.
Com a demissão da Direção Executiva do SNS, associado à diferente visão que a tutela apresenta em relação às ULS, gostaríamos de ressalvar três pontos chave em relação a esta questão: primeiro, a evidência é essencial para a tomada de decisão, mas o sucesso de uma mudança como as ULS depende mais da iniciativa, planeamento e envolvimento das equipas do que propriamente sobre a certeza sobre um modelo certo ou seguro. Infelizmente, o sucesso da aplicação de um modelo organizacional num local não garante o sucesso desse modelo aplicado noutro contexto; segundo, é nocivo para o funcionamento das organizações a ausência de uma visão estratégica de longo prazo — na realidade, essa falta de visão integrada e contínua é um dos grandes motivos para a dificuldade de articulação e rigidez do SNS e para as suas instituições se sentirem perdidas; terceiro, existem questões que devem ser trabalhadas com o atual modelo das ULS, nomeadamente assimetrias entre hospitais distritais e universitários, que recebem doentes de várias localidades e que, em ambas as realidades, têm desafios diferentes. Concordando com o modelo global das ULS, há ajustes às realidades locais que têm de ser feitos, o que não significa que o processo deva ser revertido.
O Programa de Governo já previa a revisão da planificação das ULS, com "particular destaque para as que integram hospitais universitários" (uma das principais críticas da atual ministra, por considerar que essa inclusão agrava o subfinanciamento destas unidades). Qual a principal preocupação em relação a esta gestão?
O financiamento indexado à população geográfica da ULS compromete, teoricamente, o financiamento de ULS que recebam doentes fora da sua área de influência. Além disso, há outro tipo de despesas, nomeadamente relacionadas com o ensino, formação e investigação, que são igualmente díspares entre entidades. Contudo, é também verdade que ULS mais periféricas apresentam outras questões orçamentais, relacionadas por exemplo com o transporte dos doentes ou as estruturas envolventes de suporte. Em vez de reverter o modelo, poderá fazer sentido perguntar: que projetos específicos podem ou devem ser desenvolvidos nas ULS, com vias de financiamento próprias, para colmatar estas diferenças de contexto entre as diferentes tipologias da ULS?
Existem mais preocupações pelo facto de hospitais estarem inseridos nas ULS e outros não?
Apesar de poucos, existem alguns hospitais que não estão inseridos numa ULS, nomeadamente os três institutos de oncologia (IPO Porto, Coimbra e Lisboa) e o Hospital de Cascais. Face ao número de hospitais existentes no país, é ainda um número pequeno e que representam dois grupos: os institutos de oncologia, que recebem doentes de uma vasta área geográfica, que se estende para lá das cidades nas quais estão localizados, e com uma grande complexidade dos casos tratados; e a última parceria público-privada em saúde existente no país. Sendo situações de exceção, acreditamos que a sua articulação com as ULS criadas deverá ser um dos alvos da revisão deste modelo.
O Programa de Governo prevê ainda um "incremento sustentado das USF modelo B em todo o território nacional" e "projetos pilotos de USF modelo C".
As USF modelo B têm dado cartas no que respeita à melhoria de cuidados em simultâneo com maior motivação dos profissionais, sendo fundamental alargar este modelo a todo o país. As barreiras que existiam à generalização das USF B eram um contrassenso que só contribuíram para desmotivar os profissionais dos cuidados de saúde primários e diminuir o acesso dos doentes a cuidados de qualidade. Contudo, é fundamental continuar a melhorar e inovar, procurando dar mais tempo efetivo das equipas de saúde com os utentes, diminuir a burocracia e aumentar o tipo de respostas disponíveis aos utentes, tais como, nutrição, psicologia, medicina dentária, exercício físico, entre outros.
Como avaliam as prioridades do novo Governo para o sector da saúde?
Em relação ao Programa de Governo para a saúde, destacamos positivamente a vontade de implementar um novo modelo de gestão descentralizada das instituições, com maior responsabilidade e autonomia dos conselhos de administração e, por conseguinte, das lideranças e gestão intermédia. A implementação com sucesso desta medida é fulcral para modernizar a organização dos serviços, procurando dar mais autonomia e responsabilidade às equipas e serviços clínicos para adaptar o funcionamento das unidades às comunidades nas quais estão inseridas.
Quais devem ser os objetivos prioritários das ULS?
Estamos convictos de que a integração dos cuidados entre os cuidados de saúde primários e as unidades hospitalares, bem como com as próprias comunidades é o grande propósito das ULS. Olhar para a saúde de um doente como um contínuo, como um todo, que permita uma acessibilidade mais fácil, suave e direta, ao mesmo tempo que recebe cuidados dos vários níveis necessários.
Qual o espaço de inovação destas ULS? Deve ser este um foco de prioridade?
Sem inovação, sem criar novas formas de prestar cuidados de forma articulada, o propósito das ULS não é alcançado. Aliás, o nosso guia contempla várias sugestões focadas em promover inovação nas ULS, que deve passar não só pela componente da gestão, mas também, e até mais importante, pela componente clínica, frisando que esta não é só feita por incorporação de novas tecnologias, mas também pela inovação dos processos hospitalares, do percurso do doente e pela otimização do funcionamento das equipas.
A Ordem dos Médicos veio criticar dizer que a passagem das ARS para as ULS foi "mal feita, mal preparada e realizada de forma descoordenada", afetando a formação médica. Que melhorias devem ser feitas, sendo a formação médica uma das principais incidências destas unidades?
A formação médica encontra-se neste momento ameaçada pela degradação das condições assistenciais dos hospitais. Por um lado, a diminuição do número de profissionais, associado a um elevado número de médicos internos, compromete a qualidade formativa; por outro lado, os médicos em formação são utilizados para garantir o funcionamento dos serviços, em particular da urgência. A transição para ULS, por si só, não compromete a formação, mas se bem implementada poderá ter o potencial de melhorar as suas condições.