O antigo provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML) Edmundo Martinho admitiu, na Assembleia da República, que se esteja a preparar um golpe na instituição, perpetrado por empresas privadas com o objetivo de se apoderarem do negócio do jogo, retirando-o da alçada do Estado.
“Junto-me à suspeita de que esteja aqui por trás a intenção de privatizar os jogos sociais da Santa Casa”, afirmou Edmundo Martinho, esta quinta-feira, 8 de maio, aos deputados da Comissão Parlamentar do Trabalho, Segurança Social e Inclusão, recordando que o seu antecessor entre 2011 e 2017, Pedro Santana Lopes, também já alertara para essa situação.
A privatização “seria um erro fatal e a perda monumental de um ativo“, observou.
O antigo provedor diz admitir que a intenção de entregar a exploração dos jogos a entidades privadas – suspeita, recordou, que há muito se arrasta nos meandros políticos – é uma possibilidade que não se pode descartar, ou, então, tudo o que se está a passar seria apenas um ataque à sua pessoa. Recusando aceitar esta última possibilidade, por considerar não ser justificável, então acredita que haja uma estratégia obscura para usurpação do monopólio dos jogos sociais que agora estão na órbita do Estado, através da SCML.
Desde logo, é de notar que a imagem da Santa Casa está cada vez mais degradada, e a culpa, disse Edmundo Martinho, é também de Ana Jorge, a sua sucessora.
“Desde que saí, e começaram a surgir as notícias mais estranhas a propósito da internacionalização, a imagem da SCML começou a ficar danificada e dificilmente será recuperada”, afirmou. Neste sentido, disse considerar “previsível” o afastamento de Ana Jorge.
O ex-provedor usou praticamente os mesmos argumentos do Governo para justificar a exoneração de toda a mesa administrativa. “Aquilo que foi feito pela equipa que me sucedeu não foi de molde a apontar soluções, a apontar um caminho, pelo contrário, foi no sentido de agudizar e de agravar este dano na imagem da Santa Casa”, defendeu.
E acrescentou: “[Ana Jorge] quando iniciou funções, uma das suas primeiras iniciativas foi anunciar que seria necessário reestruturar a SCML. Estamos todos de acordo porque também eu lá deixei há muitos anos um plano de reestruturação. Passado um ano o que houve foi perda de valor para a SCML, o que tornou a exoneração previsível”.
Edmundo Martinho, perante os deputados, admitiu que o plano de internacionalização correu mal, mas disse também que ainda hoje faria as coisas mais ou menos da mesma forma, por considerar que se trata de um “projeto interessante”.
“Avançámos porque era necessário assegurar a estabilidade financeira da instituição e o plano era uma boa solução”. Simplesmente, “as coisas não correram como esperávamos por vários motivos inesperados”, sublinhou.
No entanto, também garantiu que previamente ao projeto foi feito um “estudo profundo” e que tudo aconteceu de forma transparente, com conhecimento do Governo, quer no momento em que se criou a Santa Casa Global, a empresa destinada a aplicar o projeto de internacionalização, quer posteriormente, nos planos de atividades e de orçamento que eram previamente aprovados pela tutela. “Os custos estavam sempre sujeitos à aprovação prévia da tutela e lá estavam expressos os montantes e destinos desses investimentos”, explicou.
Confirmou ainda que foi feito um “investimento de 500 mil euros” num projeto de non-fungible token (NFT) que caiu por terra, como noticiou o Jornal Económico. A aposta surgiu na altura em que começou “a febre por criptomoedas", explicou Martinho, que admitiu que pediu ao filho, “a título gratuito”, uma apresentação sobre blockchain, criptomoedas e NFT à mesa da Santa Casa. Mas diz ter sido “uma coincidência” que a Utruts (empresa onde o filho trabalhava) fosse a única em Portugal a operar nessa área. “Isto não deu nenhum resultado”, apontou, sublinhando que implicou apenas a “construção de um site“, o Arthentic, dado que houve "muito poucas vendas de NTF”.
Já sobre a aquisição de uma participação de 55% na sociedade que gere o Hospital da Cruz Vermelha Portuguesa, em 2020, referiu que, na altura, defendeu que “fazia todo o sentido” que a unidade “se mantivesse na esfera pública ou social” e disse continuar a considerar ” a solução adequada”.
“Hoje essa unidade tem resultados positivos, apesar da mochila negativa“, apontou referindo-se ao elevado passivo da instituição.
Internacionalização acompanhada pelo Governo
O processo de internalização dos jogos da SCML foi acompanhado pela tutela, no caso, o Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, garantiu o ex-provedor. Acompanhamento esse, frisou, que se iniciou ainda no tempo do ministro Vieira da Silva.
Edmundo Martinho começou por explicar que o projeto de internalização denominado 5.30 surgiu como necessidade de manter equilibradas as contas da instituição. Recordou que apenas 27% das receitas da SCML são oriundas dos jogos sociais, sendo as restantes conseguidas na prestação de serviços e na exploração do património.
Na altura, os jogos sociais quase pararam, enquanto os jogos online iam-se afirmando, levando a que hoje as receitas tenham diminuído cerca de 30 milhões relativamente a 2019.
O projeto começou pela Europa. Segundo Martinho, houve uma tentativa de a SCML concorrer à privatização da lotaria em Inglaterra e em França, mas a instituição teve de se afastar por “não ter escala a nível internacional”.
Em Moçambique havia já uma experiência empresarial antiga, com a empresa Sojogo, em parceria com uma associação local, mas sem impacto, referiu. O Brasil mostrava-se, então uma oportunidade, uma vez que o mercado ainda não estava regulado. O projeto avançou em Brasília mas o Tribunal Federal acabou por impedir que existisse um projeto de exploração de jogos de âmbito federal.
Vice-provedora demissionária acusa ministra de mentir
Ana Vitória Azevedo era vogal de Edmundo Martinho e transitou para o mandato de Ana Jorge, como vice-provedora, acabando por pedir a demissão por discordar da orientação que a nova mesa administrativa aplicou na instituição. Nas declarações aos deputados da Comissão do Trabalho, Segurança Social e Inclusão, arrasou a gestão de Ana Jorge e acusou-a de ter entregue ao Ministério Público informações resultantes de uma auditoria com apenas cinco folhas sem contraditório e sem uma análise definitiva.
Ana Vitória Azevedo atirou em todas as frentes, apontando erros ao projeto de internacionalização dos jogos sociais, através da Santa Casa Global, frisando que "os mecanismos apresentavam debilidades, sobretudo no Brasil". Esclareceu, também, que nenhuma responsabilidade teve na concessão do projeto, recordando que a Santa Casa Global foi aprovada pela tutela em junho de 2020 e que apenas assumiu funções na instituição a 15 de janeiro de 2021. Quando entrou os responsáveis pelo acompanhamento do projeto eram Edmundo Martinho e o vogal João Correia. “Fui sempre contra a maneira pouco cautelosa com que o projeto estava a ser implementado", disse.
A vice-provedora justificou o seu pedido de demissão por considerar que a equipa de Ana Jorge não tinha um plano de restruturação para a instituição, aplicando apenas medidas urgentes - argumento também usado pelo Governo para justificar a exoneração. Azevedo acusou ainda Ana Jorge de apressar as denuncias relativas à gestão de Edmundo Martinho revelando que a ex-provedora entregou no Ministério Público informações ainda não totalmente confirmadas. Foi “extemporânea” a divulgar conclusões “precárias” do negócio de internacionalização e isso é “contrário aos interesses” da Santa Casa, disse.
A própria empresa auditora, a BDO, foi alvo de críticas. Ana Vitória Azevedo, recordando as suas funções antigas de auditora e de inspetora no Ministério da Justiça, disse ter estranhado que a BDO tivesse feito a reavaliação do património da Santa Casa da Misericórdia quando essa avaliação já tinha sido realizada por avaliadores certificados. Ainda sobre a BDO, na audição anterior, o antigo provedor Edmundo Martinho disse que a consultora se tinha deslocado ao Brasil para recolher informações sobre a Santa Casa Global ainda antes de ter sido contratada para realizar o trabalho.
Na ótica daquela ex-responsável, não se pode atribuir apenas ao desastre da internacionalização as culpas pelos desequilíbrios financeiros da instituição. São múltiplos os fatores, desde logo o facto de se ter aumentado os encargos da instituição, nomeadamente durante a pandemia, sem que esses acréscimos fossem acompanhados das devidas compensações financeiras, tal como se fez com o SNS, explicou.
Alvo de crítica foi também a atual ministra do Trabalho. A vice-provedora demissionária acusou Maria do Rosário Ramalho de “dizer coisas que não são verdade”, quando afirmou que a administração exonerada retirou benefícios para si própria.
“Eu sei, e isso até me choca, que a Mesa da Santa Casa não teve nenhum benefício para si e gostava que a senhora ministra explicasse que benefício foi esse”, disse Ana Vitória Azevedo, no decorrer da audição na Comissão Parlamento de Trabalho, Segurança Social e Inclusão.
Em entrevista à RTP, na terça-feira, a ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social, Maria do Rosário Ramalho, afirmou que a maioria dos trabalhadores na SCML ganha o salário mínimo e que os vencimentos dos dirigentes são muito mais altos. “Os da Mesa [da SCML] até foram aumentados, estranhámos. (…) Beneficiaram-se a si próprios”, criticou a ministra. Ana Vitória Azevedo considerou "caluniosas" estas afirmações.
A ex-vice-provedora terminou a sua intervenção apelando para que não se use a SCML como arma de arremesso político, sublinhando que a instituição fundada pela rainha D. Leonor, em 1498, não merece ser enxovalhada na praça pública. “É necessário ter sempre em conta os superiores interesses da instituição”, disse.
Considerou também que seria um erro pensar-se na privatização dos jogos sociais. “Na minha opinião não é necessário privatizar, mas sim uma melhor gestão”, disse. Em seu entender, “os jogos precisam de ser adaptados às novas gerações que jogam sistematicamente nos casinos online”. E concluiu: “Espero que quem decida o faça de forma séria e fundamentada”.
BDO acusada de mentir
Os deputados ouviram também Ricardo Gonçalves, administrador da Santa Casa Global, que acusou os auditores da BDO de terem mentido.
Nos documentos da auditoria da BDO à Santa Casa Global foi colocada 18 vezes a palavra “mentira”. Quem a colocou foi Ricardo Gonçalves, o administrador da Santa Casa Global, a empresa criada pela SCML para gerir a internacionalização dos jogos sociais. Colocou, também, seis vezes a palavra “erro”.
Segundo Ricardo Gonçalves, a consultora ter-se-á queixado de que não terá tido acesso a todos os documentos, mas, o ex-administrador, demitido em dezembro pela ex-provedora Ana Jorge, garante que toda a documentação está disponível quer na Santa Casa Global, quer na SCML. Gonçalves também garantiu ao deputados que todas as operações da Santa Casa Global no processo de internacionalização dos jogos sociais foram aprovados por unanimidade pela mesa administrativa da SCML. “Nenhuma das aprovações teve sequer uma declaração de voto”, observou. E insistiu que nada aconteceu sem o conhecimento prévio de quem liderava a instituição.
Ricardo Gonçalves entregou aos deputados a análise da BDO à Santa Casa Global num documento Excel. Numa coluna colocou as conclusões da BDO e noutra, ao lado, os seus comentários. Em 18 destes comentários está a palavra “mentira”, observou a deputada do Chega, Vanessa Barata. Esta observação surgiu depois de Gonçalves ter afirmado que a BDO não procurou os documentos e que terá realizado a auditoria sem um verdadeiro conhecimento de causa.
A palavra “mentira” foi colocada em observações que a BDO considerou serem “inconformidades” e que para Gonçalves seriam apenas “desconhecimento”. Neste sentido, lamentou também que estando a auditoria ainda no início, sem qualquer contraditório, a então provedora Ana Jorge tenha usado um documento com cinco folhas e o tenha enviado ao Ministério Público como denúncia de “inconformidades” detetadas na Santa Casa Global. O antigo administrador, arrasando a auditoria da BDO, disse, inclusive, que nunca foi convocado para o contraditório.
Depois, a comissão ouviu o anterior secretário de Estado da Internacionalização, Eurico Brilhante Dias, que, por coincidência, é também deputado naquele grupo de trabalho parlamentar. Só teve de mudar de cadeira.
Brilhante Dias confirmou que teve reuniões com Edmundo Martinho e com o então vogal João Correia, tendo ambos apresentado a intenção de Santa Casa internacionalizar os jogos sociais, pedindo apoio político-diplomático para o processo. O agora deputado socialista confirmou que fez a sinalização desse interesse nomeadamente junto das autoridades brasileiras.
Brilhante Dias acentuou que todos os processo de internalização têm risco, ainda muito mais quando o negócio é o jogo, com grande intervenção pública. A única função que teve, frisou, foi sinalizar a SCML ao Governo brasileiro. “Tive a posição de acompanhamento político-diplomático, só isso”, disse. Enalteceu também o tralho de diplomacia económica que é realizado nas embaixadas portuguesas espalhadas pelo mundo.