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“Estamos atrasadíssimos na transição digital e no uso da IA na advocacia”

O novo presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados considera que a justiça tem de se reconciliar com os cidadãos e que para o conseguir vai ser obrigatório fazer investimento. E diz que a próxima liderança da classe tem de a unir para responder aos desafios, que passam pela tecnologia, uma corrida em que estamos a ficar para trás.

António Jaime Martins já foi presidente do Conselho Regional de Lisboa, candidato a bastonário e agora foi eleito presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados, com 71,2% dos votos.
Espera que o próximo titular da pasta da Justiça tenha condições para investir na modernização do sistema, porque só assim será possível alterar a perceção que os cidadãos têm.
Não apoia nenhum dos candidatos à liderança da Ordem dos Advogados, pela posição que vai exercer, mas avisa que é necessário unir a classe para que seja possível defendê-la.

Como analisa a situação atual da justiça em Portugal?
A justiça portuguesa atravessa um período delicado. Verifica-se na generalidade dos tribunais uma morosidade processual crónica, com tribunais sobrecarregados e a debaterem-se, salvo raras exceções, com falta de recursos humanos e materiais para dar resposta em tempo útil e com a qualidade necessária às exigências de uma justiça efetiva. Há um desgaste institucional na perceção dos utentes, agravado pela objetiva falta de modernização tecnológica. Estes fatores combinados comprometem a confiança dos cidadãos no sistema de justiça, o que é preocupante num Estado de Direito.
Neste último ano, notou-se um esforço e uma melhoria, mas há muita coisa para fazer.

E como olha para a situação da advocacia, em particular?
A advocacia vive sob forte pressão económica e concorrencial, sobretudo para os advogados mais jovens e para os que estão em fim de carreira. O mercado saturado e a crescente competitividade comprimem honorários e podem levar a situações de precariedade profissional. Além disso, a morosidade da justiça e uma burocracia reinante, impactam diretamente na nossa atividade: os processos e assuntos que se arrastam com todo o tipo de dificuldades, significam atrasos na respetiva resolução e no recebimento de honorários, agravando as dificuldades financeiras dos escritórios, em especial dos recém-instalados.

Quais são os desafios que a classe e a atividade enfrentam no futuro próximo?
São múltiplos os desafios no horizonte da advocacia. Destaco a necessária transição digital no setor da justiça e a incorporação de ferramentas de Inteligência Artificial na prática jurídica, uma realidade já emergente e para as quais estamos atrasadíssimos. Este progresso tecnológico traz oportunidades, mas exige que os advogados se adaptem e atualizem permanentemente as suas competências. E, na verdade, a Ordem [dos Advogados] pouco ou nada tem auxiliado os seus associados num mundo jurídico em rápida transformação.
Por outro lado, é urgente travar a crescente precarização da profissão, com a desvalorização do trabalho dos advogados. É preciso promover a valorização da advocacia, assegurando condições de exercício condignas para preservar o estatuto qualificado e independente da profissão.
Por fim, a defesa da independência da profissão é, para mim, imperativa: numa democracia, os advogados devem poder atuar de forma livre e independente, sem pressões indevidas para defender os direitos dos cidadãos e o Estado de Direito.

O que pode o presidente do Conselho Superior da Ordem dos Advogados fazer para responder a esses desafios?
Deve, antes de mais, atuar como garante da ética profissional, reforçando a confiança dos advogados e dos cidadãos na autorregulação da classe, e simultaneamente promover a modernização do funcionamento jurisdicional do conselho, mediante procedimentos mais ágeis e a adoção de ferramentas tecnológicas adequadas, assegurando maior celeridade e eficácia na resolução de processos.
Para salvaguardar a independência, a autonomia e a liberdade dos advogados, é essencial assegurar o pleno exercício do mandato forense e das nossas prerrogativas profissionais, limitar a ação disciplinar aos casos verdadeiramente graves, que coloquem em causa a honra e dignidade da profissão e priorizar a emissão de laudos para cobrança de honorários, garantindo a justa retribuição pelo trabalho desempenhado. Em síntese, ao consolidar a ética, a eficiência na tramitação interna e a defesa intransigente da dignidade e independência profissionais. Ao fazê-lo, cumprirei o papel de fortalecer o prestígio e independência da advocacia e de promover a confiança na Ordem dos Advogados.

Vamos ter eleições, de novo. O que espera do próximo titular da pasta da Justiça?
Espero que enfrente de forma decidida os problemas estruturais do sistema. É fundamental investir na modernização dos tribunais – dotando-os de meios tecnológicos avançados e reforçando os recursos humanos – para combater a crónica morosidade processual. Sem esse investimento e um esforço real de simplificação burocrática, a justiça continuará aquém do que os cidadãos exigem.
Igualmente importante será manter um diálogo constante e construtivo com a Ordem dos Advogados. Quem assumir a pasta deve estar disponível para ouvir a classe e trabalhar em colaboração com a Ordem, pois muitas reformas legais afetam diretamente o exercício da advocacia. Uma relação de respeito mútuo entre o Ministério [da Justiça] e a Ordem permitirá implementar medidas mais equilibradas e benéficas para todo o sistema de justiça e para as empresas e cidadãos que a ele recorrem.

E o que espera da próxima liderança da Ordem dos Advogados?
Da próxima liderança da Ordem espero firmeza e independência na defesa da classe. O bastonário e o Conselho Geral devem pautar-se por uma atuação de defesa intransigente da dignidade da profissão e das prerrogativas dos advogados. Isso implica não ceder a pressões externas e afirmar, sempre que necessário, a autonomia e independência da advocacia.
Internamente, espero que o próximo bastonário queira e saiba unir a Ordem, pois nos últimos tempos as coisas nesse aspeto não correram nada bem.
O bastonário deve servir a advocacia e não estar preocupado assim que é eleito em garantir a reeleição e seis anos de salários.

Vai apoiar algum dos candidatos?
Não. A posição jurisdicional para a qual fui recém-eleito impõe-me total isenção e reserva em período eleitoral. Seria eticamente reprovável tomar partido ou envolver-me em campanhas, pois cabe-me manter o Conselho Superior imparcial e acima das disputas eleitorais.
No entanto, não posso deixar de reter que um dos candidatos proferiu referências negativas sobre mim durante pelo menos uma entrevista e apoiou ainda que de forma não pública a lista opositora ao Conselho Superior nas últimas eleições deste órgão. Essa postura indicia uma clara dificuldade de entendimento institucional no futuro, caso venha a ser eleito. Ainda assim, independentemente de quaisquer divergências pessoais, cumprirei o meu dever de cooperação leal com quem for eleito, em prol da advocacia e da justiça.