Não foram propriamente as eleições de 26 de maio que a causaram, mas os resultados do escrutínio europeu na Alemanha vieram evidenciar ainda mais a profunda crise política que grassa em terras germânicas pelo menos desde que a chanceler Angela Merkel, tendo vencido as legislativas de setembro de 2017, demorou quase meio ano a formar governo.
Desde então, dir-se-ia que quase tudo correu mal na Alemanha: o casamento antigo e feliz entre a CDU de Merkel e a CSU bávara quase acabou em divórcio litigioso (por via da vontade do ministro do Interior da CSU, Horst Seehofer, em fechar portas aos imigrantes); as diversas eleições regionais entretanto realizadas afundaram a CDU em vários Estados; a extrema-direita do Alternativa para a Alemanha (AfD) não parou de crescer; Merkel anunciou que estava farta de mandar na Alemanha e na Europa e se retiraria no final da legislatura; fora de portas o abrandamento da economia resultou na revisão em baixa das perspetivas de crescimento da Alemanha; e as consultoras desataram a produzir researchs segundo os quais se avolumam evidências de que o motor da economia europeia está prestes a gripar.
Mas há um ‘antes’ e um ‘depois’ das eleições europeias. Se até 26 de maio o maior partido alemão e o SPD, aliado de circunstância na grande coligação, tinham conseguido maquilhar o desgaste que o governo de Berlim vinha sofrendo, a partir do ‘fatídico’ domingo a pintura é mais difícil de manter.
No campo social-democrata, os maus resultados do SPD nas europeias (15,85% dos votos e o terceiro lugar atrás da CDU e dos Verdes), a que se juntam sucessivas derrotas regionais – com especial destaque para o Estado de Bremen (que perdeu pela primeira vez em 73 anos) – produziram uma hecatombe no partido, que acabou por consubstanciar-se na demissão da líder, Andrea Nahles. O SPD engendrou uma curiosa solução de recurso: um triunvirato formado por Thorsten Schaefer-Guembel, Manuela Schwesig e Malu Dreyer, que liderará a transição do partido para um lugar qualquer a que está neste momento a dirigir-se.
Pior ainda: Nahles, que abandona a liderança pouco mais de um ano depois de assumir o cargo, assistiu a uma debandada dos que poderiam estar na fila para a substituir (daí o triunvirato): nos dias seguintes, os potenciais herdeiros correram para os jornais a explicar que não contassem com eles. Pelo menos por enquanto, claro está.
Mas a derrocada atingiu a própria CDU (eis o grande problema da Alemanha, e possivelmente da Europa): os 28% que obteve são o pior resultado de sempre numas eleições europeias (nas últimas teve 35,5%), e foi igualada em número de deputados europeus de um só partido pelos britânicos do Partido Brexit, de Nigel Farage (imagine-se o choque de Merkel).
Resultado: o ambicioso plano de tomada do poder na Europa por parte da Alemanha – que previa, pelo menos, o controlo da Comissão Europeia e do Banco Central Europeu, e tinha em vista o ‘cerco’ a Mário Centeno enquanto líder do grupo do euro – ruiu inesperada e violentamente a 26 de maio.
O embaixador e analista político Francisco Seixas da Costa não podia, em declarações ao JornalEconómico, ser mais claro: “Manfred Weber [candidato alemão à presidência da Comissão Europeia] morreu politicamente e o PPE, que foi um feudo da CDU desde a sua criação em 1976, está prestes a fugir do controlo da Alemanha”.
A fragilidade europeia
E tudo isto numa altura em que a Europa é acossada pelos Estados Unidos – com Trump apostado em acabar com a União enquanto potência regional – e teria todo o interesse em mostrar musculatura para ‘bater o pé’ ao ‘amigo americano’. A CDU navega agora à vista no seio do PPE: com a perda da hegemonia interna e uma dimensão muito reduzida face a 2014 e principalmente a 2009, “vamos ver até quando é que resiste a fazer alianças estranhas”, e até agora peremptoriamente desmentidas, com a extrema-direita de Farage, Le Pen, Salvini & companhia.
Quando essa sempre possível aliança acontecer, a União Europeia terá dado o primeiro passo num caminho novo – desconhecido e não pensado, pelo menos pelo PPE, e também não, seguramente, pela família socialista – que definitivamente a desviará dos pressupostos por detrás do Tratado de Lisboa (para não se ir mais longe no histórico dos tratados).
E, em paralelo à questão política, sobrevive a económica. Um relatório da seguradora de crédito catalã Crédito Y Caución, um dos já referidos researchs, afirma que “as insolvências vão aumentar na Alemanha em 2019 em 2% face ao ano anterior, num contexto de desaceleração económica provocada pela diminuição da procura externa”. E que a expansão económica da Alemanha desacelerará em 2019.
O relatório “prevê uma recuperação no crescimento em 2020, mas adverte que uma acentuada desaceleração do comércio mundial e a potencial imposição de tarifas de importação sobre automóveis e componentes por parte dos Estados Unidos representa um risco de queda para a economia alemã”.
Seixas da Costa recorda que, tradicionalmente, “na Europa nada se faz contra a Alemanha, nada se faz sem a Alemanha”, mas admite que este cenário pode mudar em breve. Para se perceber até que ponto há que esperar pelas ‘assassinas’ conversações entre as famílias europeias para gerarem um presidente da Comissão e o seu colégio de dirigentes – assim como será também crucial perceber-se quem ficará a mandar no Parlamento Europeu, no Conselho Europeu e no Banco Central Europeu.
Para já, esta frente de combate está envolta numa nebulosa muito cerrada, mas o mais certo é que, com a Alemanha a ‘desligar’ o motor, o poder na Europa se deslocalize para outra geografia. Resta saber qual. A esperança é que a contenda se incline para ‘make France great again’ (perdão: ‘rendre la grande France à nouveau’), mas não há nenhuma certeza de que esse seja o cenário mais sólido em termos de desfecho.