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Contra a corrente do compadrio e das cunhas

O livro “Compadrio em Portugal”, que publiquei recentemente com a Fundação Francisco Manuel dos Santos, assenta em três pilares fundamentais. Em primeiro lugar, afasta-se da moralidade acusatória.

Não se trata de um ensaio moralista, nem visa apontar o dedo a ninguém. Em segundo lugar, defende-se um diálogo aberto e sincero sobre o compadrio, promovendo um debate sem desconforto ou falsidade, sempre tendo em vista um renovado sentido de bem comum. Por fim, apela-se a um novo começo, sustentando a ideia de uma espécie de amnistia coletiva. Perdoemo-nos, portanto, uns aos outros pelas “cunhas” e pelo compadrio que fomentámos ou face ao qual nos silenciámos durante as últimas décadas.

Portugal encontra-se submerso numa tradição perniciosa de compadrio e “cunhas” que alimenta desigualdades, perpetua injustiças e enfraquece o tecido social. O Eurobarómetro, ao traçar um panorama das perceções públicas, mostra que uma fatia significativa dos portugueses vê a corrupção como um cancro entranhado na sociedade.

Segundo este instrumento, mais de 90% dos inquiridos consideram a corrupção (que prolifera a partir do compadrio e inclui as “cunhas” como uma das suas formas de operacionalização) uma prática comum e omnipresente, numa percentagem que tem aumentado desde 2017. Segundo mais de metade dos inquiridos, a situação tem-se agravado desde 2016 – colocando Portugal como o terceiro país europeu com maior perceção de corrupção, atrás da Croácia (96%) e da Grécia (97%).

O pior agravamento da situação coincidiu com o período da chamada “geringonça”. Perturbadoramente, um em cada quatro portugueses considera normal trocar favores ou presentes para obter vantagens em serviços públicos, um número três vezes superior à média europeia. E é absolutamente inquietante saber como 60% dos inquiridos sentem que a corrupção impacta diretamente as suas vidas, um aumento notório face aos 40% registados nos três anos anteriores.

No entanto, durante a minha investigação que resultou num outro livro, a “Anatomia da Cunha Portuguesa”, publicado pela Guerra e Paz, deparei-me com um consenso tão surpreendente quão promissor: todos os entrevistados, sem hesitação ou meias palavras, expressaram o desejo de um futuro isento de “cunhas” para as gerações vindouras.

Esta raríssima unanimidade nacional acende uma luz de esperança, sinalizando um reconhecimento coletivo do caráter corrosivo e destrutivo do compadrio e das cunhas. Este consenso raro abre uma oportunidade única para agir, desde que surjam líderes à altura da responsabilidade que tal desafio exige.

Mas mudanças superficiais não bastarão. É crucial atuar nas raízes do problema: a pobreza crónica no país e a falta de transparência como forma de vida. A pobreza, nas suas várias facetas — seja económica, de acesso a emprego de qualidade ou de qualificações, ou de capacidade de compreensão dos direitos que se tem —, atua como catalisador do compadrio, que por sua vez sustenta um sistema onde o jeitinho parece ser o único caminho viável para a ascensão social. Neste contexto, maior transparência será sempre vista como ameaça ao sistema porque mostrará como o rei vai nu – tornará visíveis as insuficiências, as incompetências, as inconsistências e o desmérito.

Para inverter este cenário preocupante, é imperativo implementar medidas específicas e robustas, que promovam a transparência e equidade na nossa sociedade.

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