Os medos de uma crise imobiliária e financeira de larga escala na China regressaram esta semana, depois de o maior promotor privado do país ter falhado o pagamento de dois cupões denominados em dólares. O caso faz relembrar o que se passou com a Evergrande, cujo plano de reestruturação aguarda ainda aprovação nos tribunais de Hong Kong, e pode gerar ondas de choque no sistema financeiro global.
A Country Garden, o maior promotor imobiliário privado chinês, falhou esta semana dois pagamentos de cupões denominados em dólares, reacendendo os medos globais de uma crise no sector do imobiliário da segunda maior economia do mundo. Segundo a Reuters, os cupões em questão expiram em fevereiro de 2026 e em agosto de 2030, tendo um período de graça de 30 dias.
O montante total por liquidar será de 22,5 milhões de dólares (20,48 milhões de euros), acrescenta a Reuters. Caso se confirme o incumprimento da Country Garden, as consequências podem ser piores do que aquando do default da Evergrande, dado que a empresa tem quatro vezes mais projetos do que o gigante que entrou em incumprimento em 2021, avisa a analista Kristy Hung, da Bloomberg.
Este é o mais recente episódio num mercado imobiliário periclitante, que tem dado sinais repetidos de fraqueza. Os dados macro do sector mostraram um recuo homólogo nas vendas de casas novas de 33% em julho, a maior queda desde julho do ano passado. Mais, nos primeiros sete meses do ano combinados, o recuo foi de 4,7%, uma tendência também verificada nos preços, que estiveram em queda na primeira metade do ano.
Esta quebra na procura tem levado a uma diminuição nos fluxos de caixa das empresas do ramo, que enfrentam endividamentos muito elevados, explica a análise da Gavekal Economics. Barrados dos mercados internacionais depois do colapso da Evergrande, os construtores chineses veem-se assim impossibilitados de se financiar, agravando o efeito negativo dos custos de dívida nos seus balanços à medida que as suas posições de liquidez se deterioram.
Perante estas dificuldades, a Country Garden reconhece em comunicado que irá “procurar ativamente a orientação e apoio do Governo”, que tem servido de salvaguarda para o financiamento das empresas sob a sua alçada. Ainda assim, nem isso é uma garantia de sucesso: o Sino-Ocean Group, detido pelo Governo central, encontra-se atualmente em negociações com os seus credores para reestruturar a sua dívida, o que mostra que “nem estas [empresas] estão livres de risco”, argumenta a Gavekal.
As analistas Xiaoxi Zhang e Rosealea Yao, autoras da nota da Gavekal, destacam a diferença na percentagem de empresas privadas e estatais com um rácio de cobertura dos juros inferior a 1 – ou seja, aquelas em que o custo da dívida é superior aos lucros. No sector privado, este número foi de 48% em 2022, o que se traduz em quase metade do sector com fragilidades financeiras claras decorrentes da dívida em stock. Em 2021, este valor era de 25% e de 8% em 2020.
No sector público, apenas 17% das empresas apresentavam um rácio inferior a 1 em 2022, o que ainda assim representa uma subida considerável em relação ao intervalo entre 4% e 8% dos últimos anos. A contribuir para tal está uma degradação da carteira de ativos das promotoras imobiliárias, que se têm visto “obrigadas a assumir perdas (por vezes, por pressão de auditores)”, aproximando-se em muitos casos de uma insolvência.
Em declarações à Reuters, a Country Garden garante estar a melhorar a sua posição de capital para cumprir com as suas obrigações financeiras. Ainda segundo a agência noticiosa, as liabilities da construtora chegavam a 194 mil milhões de dólares (176,70 mil milhões de euros) no final de 2022.
Esta situação pode levar a uma espiral negativa no mercado imobiliário chinês com consequências graves para o sistema financeiro internacional, projeta a Gavekal. Confrontados com stress financeiro, os construtores ‘despejarão’ propriedades para o mercado para fazer face às suas obrigações, empurrando para baixo os preços residenciais.
Enfrentando falta de capital, muitos projetos poderão ficar na gaveta, destruindo a confiança das famílias chinesas no sector da construção. Um bom exemplo disto são as 720 mil casas vendidas antes da construção que a Evergrande tinha ainda por completar no final de 2022, o que compara com umas meras 300 mil edificadas no mesmo ano.
Pressentindo estes problemas, o Centro para Análise da China do Instituto para a Economia Chinesa da Universidade de Stanford havia já publicado uma série de projeções e recomendações relativas ao mercado imobiliário daquele país, avisando para os efeitos de um modelo de desenvolvimento económico assente no investimento em construção.
Com um abrandamento causado por motivos estruturais e não conjunturais, o segmento imobiliário chinês pode agora pesar no crescimento do país durante largos anos, projeta o painel. A intervenção do Governo no sector é um espelho do regime híbrido capitalista/comunista do país e, se funcionou como um estímulo bem-sucedido ao PIB nos últimos anos, agora é a causa destas preocupações.
Evergrande aguarda tribunal
Depois dos defaults no final de 2021, a Evergrande encontra-se ainda em processo de reestruturação, processo esse que tem enfrentado dificuldades. Em particular, parte dos credores duvidam da capacidade da empresa para levar a cabo este plano, dadas as perdas massivas que declarou recentemente.
A gigante do imobiliário adiou repetidas vezes a divulgação dos resultados de 2021 e 2022, mas reportou há três semanas perdas combinadas de 81 mil milhões de dólares (73,71 mil milhões de euros), o que gera dúvidas quanto à sua viabilidade, mesmo com a reestruturação proposta. Um estudo encomendado à Deloitte pela construtora estima uma taxa de recuperação de 22,5%, muito superior aos 3,4% estimados caso a firma seja liquidada.
Incapazes de influenciar a empresa na China, dada a proteção governamental de que goza neste departamento, os titulares de cupões conseguiram obrigar a Evergrande a responder num tribunal em Hong Kong, onde está listada, quanto à viabilidade do plano. O tribunal decretou, entretanto, um voto para os credores internacionais no final de agosto, com a decisão marcada para 5 e 6 de setembro.