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Bernard-Henri Lévy, a Covid e as nossas angústias

Chegados ao fim do Verão e das férias grandes, retomado o serviço de pais que trabalham e o início do ano escolar, sentimos que volta a sombra angustiante do quotidiano anómalo do último meio ano e a incerteza sobre o futuro muito próximo.

Chegados ao fim do Verão e das férias grandes, retomado o serviço de pais que trabalham e o início do ano escolar, sentimos que volta a sombra angustiante do quotidiano anómalo do último meio ano e a incerteza sobre o futuro muito próximo. Com certeza, temos que a quebra do PIB foi colossal e que não será possível repetir o confinamento sem a ruína económica e todas as consequências que daí se seguiriam. Aliás, algumas já bem certas, consequências que políticas públicas apenas vão adiando, sabe-se lá até quando. Moratórias sobre as contas, rendas e créditos de todos os tipos cujo pagamento em falta vai engrossando não se sustentam por decreto. Nem despesa pública crescente se sustenta com uma abrupta quebra de receita fiscal.
Mesmo que não voltemos a confinar, isso não significará a normalidade reatada, mas sim que teremos de tolerar um desconfinamento com garrote, mais ou menos apertado consoante a evolução da pandemia, como um suplício colectivo a castigar distracções. E que, por ser sofrido colectivamente, indispõe-nos facilmente uns contra outros, prontos a vigiar e a denunciar, com uma irritabilidade reactiva que se vai instalando no espaço público e nas suas modalidades mais participadas – que são as redes sociais.
As perdas de rendimento e de empregos, o horizonte tenebroso de uma crise económica de grande magnitude chegam para que muitos se perguntem se não andaremos a sobrestimar a Covid. Alguns, tão certos disso, indignam-se com o que chamam uma “fixação” e até teorizam sobre as razões de tal fenómeno. É o caso de Bernard-Henri Lévy, que escreveu um best-seller (“Este Vírus que nos Enlouquece”, ed. port. Guerra e Paz, 2020) cheio de certezas e presunção a denunciar a ascensão do “poder médico” e como “o rei vai nu, especialmente se for médico”.
O espaventoso filósofo francês, que vai lançando menções como quem lança migalhas aos pobres – a Foucault, Bachelard, Lévinas e outros relevantes filósofos –, acusa-nos, sociedade e poderes, de termos dedicado, com a Covid, uma confiança cega aos médicos, tornados super-homens com plenos poderes. Para ele, o problema não é a pandemia, que acabará por ser controlada, mas a capitulação das democracias à tirania da saúde pública. E a uns tantos oportunistas miseráveis que tiveram o desplante de ver na situação difícil que vivemos uma oportunidade para pensar por que razão, em sociedades tão avançadas e de abundância, continua a ser tão difícil adaptarmo-nos a situações de crise como uma pandemia. Diante disto, em vez de debater, Bernard-Henri Lévy, como bom filósofo de supermercado, exclama: “Calai-vos! Por favor, ficai em silêncio.”
Calai-vos? Lendo o pequeno livro que se apressou a escrever, concluímos que Lévy não é um negacionista que imagina na Covid uma conspiração para algemar o tudo-posso-fazer-sem-querer-saber-das-consequências. Não, Lévy não está no campo do Bolsonaro e Trump, mas num campo vizinho, em que se diz: tens de continuar a vida como ela é não importa as consequências. E do cimo da sua autoridade, presume-se que não médica, Lévy descansa os leitores: “Mais tarde ou mais cedo, a epidemia será controlada.” É certo que sim, mas o que não seria uma verdade de la Palisse era sabermos quando e de que maneira se controla esta epidemia, com custos que sejam aceitáveis. Isso, obviamente, não compete a médicos decidir, mas também não se decide seriamente sem ter em boa conta o que eles sabem e, não menos importante, o que eles dizem não saber.

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