Entre os principais projetos previstos nos próximos anos, encontra-se a produção de combustíveis sustentáveis (e-SAFs) na Figueira da Foz pela Navigator e os alemães da P2X Europe num investimento de 550 a 600 milhões de euros. O objetivo é produzir em grande escala combustíveis para a aviação, sintéticos, neutros em carbono.
Já a Prio pretende produzir diesel verde em Setúbal, num investimento de 600 milhões de euros, tal como revelou o Jornal Económico em abril de 2023.
Mais a sul, em Sines, dois projetos: a Galp vai investir 400 milhões em conjunto com os japoneses da Mitsui para produzir e vender gasóleo renovável HVO (Óleo Vegetal Hidrotratado) e combustível sustentável para a aviação (SAF) a partir de resíduos usados, numa unidade adjacente à refinaria de Sines, com capacidade anual de produção de 270 mil toneladas.
E o consórcio luso-neerlandês Madoqua pretende investir 450 milhões para produzir metanol verde para descarbonizar a indústria do cimento.
Na entrevista, Ana Calhôa defende que os combustíveis verdes têm um papel importante a desempenhar na transição para carbono zero. Olhando em particular para os biocombustíveis, aponta que esta solução já está disponível para os consumidores nas bombas, permitindo acelerar a redução de emissões, sem a necessidade de investimento em novas infraestruturas. Defende também o aumento da meta obrigatória de incorporação dos biocombustíveis dos atuais 7% para os 10% para acelerar a transição energética.
Qual o investimento previsto pelo sector dos combustíveis verdes em Portugal?
O investimento previsto de cerca de 2 mil milhões de euros para a transição energética reflete o compromisso de Portugal e da indústria nacional com a sustentabilidade e o alcance das metas estabelecidas, sendo um passo bastante significativo rumo a um panorama energético alicerçado em alternativas verdes. Desta forma, Portugal poderá consolidar a sua posição na linha da frente num futuro livre de emissões, com maior autonomia energética e enquanto exemplo a seguir.
Os biocombustíveis fazem parte da solução? Ou estão aqui para substituir outras tecnologias?
A verdade é que vamos precisar de todas as soluções que existem e ainda daquelas que vão ser inventadas. Se queremos realmente descarbonizar a mobilidade, vamos precisar de tudo. Olhando para as vendas dos veículos pesados, entre 2019/2023, 96% das vendas são de motores a gasóleo. Se tivermos em consideração a idade média de cada veículo, pelo menos 15 anos, e estou a ser bastante otimista, é preciso contar com todos os biocombustíveis, combustíveis verdes e sintéticos, pois todos vão ser essenciais para esta descarbonização. A solução elétrica vai ser importante, essencialmente para os veículos ligeiros, mas temos que perceber que para os pesados vamos precisar muito destas soluções. A nível de produção nacional, continua a ser essencialmente de matérias primas residuais: mais de 85% sempre de matérias primas residuais e o restante de matérias primas virgens. Temos esta tendência crescente de cada vez mais produzirmos biocombustíveis a partir de matérias primas residuais e cada vez menos a partir de matérias primas de origem virgem de óleos virgens.
Não se pode simplesmente mandar abater todos os veículos a combustão interna...
Os motores a combustão são uma realidade. Ainda vão existir, e existem soluções tecnológicas para descarbonizar, temos é que as utilizar. Desde há muito tempo, que os biocombustíveis são a solução que mais tem contribuído para a descarbonização dos transportes e da mobilidade. A verdade é que a grande maioria da descarbonização e do cumprimento das metas tem sido feita através dos biocombustíveis, e apenas 5% ou menos feito por veículos elétricos, em termos de cumprimento de metas, da redução de CO2 a nível nacional. Esta solução tem contribuído bastante e no futuro vai continuar a contribuir em paralelo e em complemento. Não tenho a menor dúvida que, tecnologicamente, 15% já é possível. Por isso, porque é que estamos limitados a 7%? É absurdo. Na Europa e em Portugal estamos a fazer essa luta para que o mínimo seja 10%.
A meta de incorporação continua inalterada?
Estamos nos 7% de biodiesel, biocombustível, e o resto é combustível fóssil. Tudo o que colocarmos de biocombustível estamos a retirar de combustível fóssil. Estamos a reduzir bastante a nossa dependência energética, e a reduzir bastante as nossas emissões. Estamos a promover a economia circular, porque nunca nos podemos esquecer que estamos a utilizar resíduos, ou seja, é algo que está sempre a ir para aterros, para as águas e estamos a dar uma nova vida a algo que iria poluir. Isto é essencial: transformar o lixo em energia. Como também não precisamos de adquirir um veículo novo, não precisamos de criar uma infraestrutura toda do zero. Ou seja, há aqui uma série de investimentos que não são necessários de fazer. É algo que existe hoje, é fácil de utilizar porque é possível misturar com gasóleo.
Esta meta de incorporação deveria aumentar? Já há datas para tal?
Não há datas. A limitação que nós temos de 7% devia subir para 10%. Na União Europeia, tal como aqui em Portugal, o que nós estamos a tentar fazer é que passe para 10%. Já se luta há bastante tempo e acho que está perto. Isto porque, lá está, tem que ser na União Europeia para podermos ter um standard que tem que ser estabelecido por todos. Mas também admito que já foi uma grande vantagem podermos começar a comercializar combustível com maior incorporação, como no caso das soluções com 15%, que é só para frotas.
Tem havido uma forte aposta por parte do Estado na mobilidade elétrica em detrimento de outras tecnologias, no sentido que estão a escolher aqui um campeão. Como sabes, a rede de mobilidade tem sido financiada com fundos públicos ao longo desta década. Há aqui uma escolha demasiado exacerbada, quando vemos, na altura, o ministro que era o Matos Fernandes a anunciar a compra de 800 autocarros elétricos para a Carris e para os transportes do Porto?
Eu acho que os biocombustíveis, por exemplo, sempre ficaram um bocadinho de parte. Na verdade, na realidade, são os únicos atualmente que estão efetivamente a descarbonizar e isso é um bocadinho frustrante. Porque, na verdade, a realidade não está a ser falada e isso gera um bocadinho de frustração neste campo. O elétrico é importante, o hidrogénio é importante, todas as soluções são importantes, volto a dizer. Até porque eu acho que o elétrico será a solução, por exemplo, para os carros ligeiros. Sem esquecer que os biocombustíveis também serão a solução para os ligeiros que ainda terão que andar nas estradas porque tem os carros pela questão do parque automóvel existente e que ainda vai existir por mais 10/20 anos. Por isso. os biocombustíveis ainda vão ter que ser uma solução para os veículos ligeiros e já nem estou a falar da aviação, da marítima, etc. Também tenho a certeza absoluta que estes combustíveis verdes serão uma solução para os veículos pesados, sejam eles de passageiros, sejam eles de mercadorias. Serão a solução inevitável para os veículos pesados. E atenção, quando eu falo desta solução, é para já: é possível misturar com combustíveis fósseis, para já utiliza-se apenas 7% no gasóleo, mas poderíamos estar a utilizar misturas substancialmente maiores. E isso também é uma das coisas que a ABA defende. Podíamos utilizar 10%/15%/30% em pesados, que são os limites neste momento aceites pela indústria.
Sobre o licenciamento de projetos industriais, deveria ser mais fácil as empresas conseguirem fazer estes licenciamentos?
É difícil, porque alguém que queira investir... a verdade é que só há barreiras, barreiras, barreiras. O licenciamento é complexo, tudo é muito complexo. É preciso simplificar, o que não significa facilitar. É preciso investir para produzir e para criar valor em Portugal. Ponto. E o licenciamento é uma barreira complexa que temos. Os nossos associados também se queixam disto.
Eu acho que devem existir os apoios a todas as soluções, inclusive e também obviamente aqui aos biocombustíveis. Porque são eles todos em conjunto, que vão ajudar a descarbonizar e a conseguir com que Portugal cumpra metas e conseguir que Portugal consiga descarbonizar, quer seja a indústria, quer seja a questão dos transportes. Volto a dizer, a aposta no elétrico vai funcionar para os veículos ligeiros. A aposta nos biocombustíveis vai funcionar para os pesados. As soluções complementam-se.
Os investimentos de dois mil milhões de euros são suficientes para o país ser independente?
Hoje em dia Portugal já produz mais de 400 milhões de litros destes combustíveis verdes. Falando aqui também dos nossos associados e temos capacidade com estes novos projetos ficamos com uma capacidade para aumentar em muito esta produção de combustíveis verdes e assim conseguir descarbonizar ainda mais. Já cobre o consumo anual de Portugal em biocombustíveis. Depois, conseguimos ainda fazer exportação, o que é muito aliciante para o país. E a verdade é que com tudo isto junto, ou seja, com estes projetos novos a aparecerem de combustíveis verdes, com a capacidade produtora que nós temos e tudo o mais, a verdade é que nós conseguimos acelerar muito esta transição energética na mobilidade.
Eu acho que temos capacidade para o fazer.
As entidades oficiais deveriam ter maior carinho para com esta fileira?
Trabalhamos bem com elas. O problema tem a ver depois com estabilidade regulatória, mas penso que isso é um problema geral. Porque temos diplomas a nível europeu, depois transposições...
Considera que os biocombustíveis não são considerados sexy como outras tecnologias, e por isso são muitas vezes ignorados?
Sim. É uma luta diária, mas temos vindo a desmistificar uma série de mitos. Por exemplo, há quem pense que o biocombustível usado é óleo de palma e Portugal já nem usa este tipo de óleo sequer, ou nem sequer reconhecerem que grande parte da nossa produção é feita a partir de resíduos.
É possível transitar para um mundo mais sustentável, sem as famílias irem à falência?
Quando falo em ser sustentável, não é só ambientalmente que é importante, mas também economicamente e acessível a todos. No caso dos biocombustíveis, as pessoas não são obrigadas a trocar de carros. Já se sabe que muitas não vão conseguir trocar de carro, e assim existe uma solução.
A 10 de março, o país vai ter um novo Governo. Seja qual for, qual a mensagem que a fileira dos biocombustíveis enviaria ao novo executivo?
Olhem para todas as soluções de mobilidade da mesma forma, ou apostem em todas de igual forma. E analisem bem a realidade nacional, porque temos um parque automóvel envelhecido. Isto já seria um bom começo.