Como nos vamos entender com o mundo? Seja com este, o planeta Terra que nos viu surgir e que habitamos, seja com qualquer outro que imaginemos poder vir a habitar. A pergunta traz implícita outra, menos cómoda: porquê este flagrante desentendimento da espécie humana na sua actual etapa histórica com o espaço e o tempo que ocupa e com as coisas que usa?
Ironicamente, o humano existe com a consciência de não ter uma resposta dada à partida para a sua razão de ser, dedicando boa parte da sua vida a justificar-se a existência e, no entanto, tratando tudo em seu redor como se existisse simplesmente à sua disposição, sem questão própria, nem outro sentido.
O antropocentrismo é este desequilíbrio ecológico com as outras espécies, a vida do planeta, a matéria de que este é feito, até com os outros planetas. O desequilíbrio ecológico, respeitando primeiro ao mundo próximo em redor, que nos sente a acção, é um desequilíbrio cósmico. Estar no centro do mundo é remeter todo o universo para a periferia.
E esta lógica de centro e periferia, que protege sempre a parte mais forte e vulnerabiliza a parte mais fraca, reproduz-se também dentro da espécie, como se dentro de um círculo outros cada vez mais reservados se desenhassem, segregando tudo o mais.
Por vezes, a possibilidade de reversão do antropocentrismo ainda bebe do mesmo caldo, procurando encontrar qualquer coisa de humano nas outras espécies animais, na vida em geral, até no planeta. Como se, afinal, tudo partilhasse um pouco a massa do humano e assim se diluísse a tinta com que desenhámos círculos ou se empurrasse a linha para fora, em movimento centrífugo, trazendo para dentro os que estavam do lado de fora.
A história política ocidental é pródiga em exemplos de minorias que tiveram que ser resgatadas para dentro do éden do igual reconhecimento. Só que agora a questão já não é apenas entre humanos, mas do mundo inteiro, já não é apenas a questão de Roland Barthes “como vamos viver juntos?” mas a mais ampla pergunta: “como vamos nos entender com o mundo?” E se as desigualdades demasiado fundas, e as segregações que nem permitem a ousadia de conceber saltar o fundo cavado, exclusões que nunca foram vencidas pela estratégia dos ganhos de inclusão, a radicalidade da questão ecológica tem de ir por outro caminho.
Se nos tratamos tão mal entre humanos como poderíamos, pela mesma estratégia, tratar decentemente o que não é humano? Não basta o regozijo de ver no mundo animal senciência como a dos humanos, e de ver inteligência e intencionalidade no mundo vegetal, ou de ver beleza na paisagem como no rosto dos nossos filhos, tudo atributos valorizados a partir do que neles nos reconhecemos.
Pode haver um compromisso interessante com o antropomorfismo para diluir o antropocentrismo, torná-lo menos fixado em si mesmo, tornar-nos mais atentos às distracções que o mundo nos dá para contemplar e fruir.
O ponto de viragem não estará tanto na compreensão da vida e da matéria de que é feito o mundo através da referência aos modos de ser humanos, antropomorfizando-as, com os benefícios de respeito que daí se seguem, mas, pelo contrário, na compreensão dos modos de ser humanos pela perspectiva da própria matéria, do que nela haja de fundamentalmente inerente à compreensão do que é uma relação.
Deve haver exemplos de culturas não ocidentalizadas em que acontece o movimento inverso, ou em que ambos os movimentos coexistem. O empobrecimento da relação com o mundo é sobretudo o da hegemonia da ocidentalização. Mas, para mobilizarmos esta relação com a matéria, precisamos de perceber primeiro como a própria matéria está sob uma concepção opressora de que precisa ser libertada.
Esse é o caminho para que aponta o movimento intelectual que se tem dado a conhecer como “Novo materialismo”, a partir de obras como a de Jane Bennett, filósofa política norte-americana, professora na Universidade Johns Hopkins e autora do já clássico “Vibrant matter – a political ecology of things” (2010). Aí se explora um entendimento energizado da matéria, como “materialidade vital”, repensando-se o mundo como povoado não por objectos passivos mas por coisas animadas, que resistem à nossa acção, mas também agem por sua conta.
A propósito do que chamou “a força das coisas”, Bennett propõe dois conceitos – coisa-poder (“thing-power”) e lado-de-fora (“out-side”) que, em boa medida, rejeitam um entendimento inerte da matéria para agenciar uma alteridade viva, uma “strange dimension of matter”.
Para boa parte da tradição filosófica, a maneira como se concebeu o conhecimento foi a de uma forma conferida à matéria, confinando esta última a uma condição embrutecida. A forma era activa e a matéria meramente reactiva, conhecemos pela forma o que a matéria não nos impede, esta apenas provida de capacidade de dizer ‘não’, como um limite à liberdade das nossas mentes interpretarem e conferirem sentido ao mundo, um limite incontornável, mas inerte, passivo, desprovido de força relacional.
A matéria foi concebida de forma desvitalizada e assim se impôs uma cesura entre matéria e a sua própria compreensão como realidade relacional.