De um escritório no coração financeiro de Londres, Bernardo D’Orey passou para uma cozinha em Lisboa, onde o aroma da comida tradicional portuguesa dita o ritmo do dia a dia. A rotina stressante marcada por números e reuniões mudou quando foi desafiado por um amigo a investir no “Coma ou Leve”, um take-away com lojas em Alvalade e Campo de Ourique, que confeciona pratos como bife Wellington ou feijoada. Bernardo, de 51 anos, decidiu entrar num mercado em plena transformação: o dos portugueses que procuram soluções práticas para comer sem precisarem de sair da sala de jantar. “Houve duas razões para entrar neste negócio. A emocional, porque tenho uma paixão pela área da culinária, e a racional, pois percebi que ia haver um crescimento muito grande nos serviços de pronto a comer”, diz o proprietário ao Jornal Económico. 
No “Coma ou Leve”, fundado em 1976, e adquirido pelo gestor em plena pandemia, os clientes estão na faixa etária entre os 35 e os 50 anos e têm pouco tempo para cozinhar. “São pessoas que têm uma vida profissional muito ativa e preferem ocupar o tempo livre no ginásio ou a jogar padel. A partir de quinta-feira, o número de encomendas costuma aumentar em 50%”, acrescenta Bernardo D’Orey.
De facto, os portugueses privilegiam cada vez mais as refeições caseiras, seja na própria casa ou na de familiares e amigos. Segundo dados revelados pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, dois terços das refeições consumidas são de confeção não doméstica. “Há uma mudança nos hábitos dos consumidores. Muitos clientes trocaram as refeições presenciais nos restaurantes, que vendem cada vez mais em take-away, e preferem comer em casa”, diz Daniel Serra, presidente da ProVar, Associação Nacional de Restaurantes, ao Jornal Económico. 
Nos últimos anos, o comportamento dos consumidores tem sofrido mudanças significativas no que diz respeito aos hábitos alimentares. “Em Portugal vemos uma tendência crescente na procura de refeições prontas para consumir em casa. Além do custo elevado de ir almoçar ou jantar fora, vivemos num ritmo de vida acelerado, que deixa pouco tempo para cozinhar em casa. As pessoas, sobretudo as gerações mais jovens, valorizam cada vez mais o tempo livre para estar com a família, com os amigos e para se dedicarem a outras atividades que gostam”, explicam Constança e João Travassos, proprietários do “Dez Prá Uma”, uma empresa familiar que começou há 23 anos com um restaurante que servia almoços e, desde então, foi evoluindo para um modelo de negócio diferente e focado em refeições prontas para consumir em casa. Hoje, tem 89 colaboradores e 11 lojas na zona de Lisboa e Setúbal. 
“As plataformas de entrega têm também acompanhado e contribuído para esta tendência. Apesar de, tradicionalmente, as suas ofertas se concentrarem em fast food, as preferências dos consumidores têm levado estas aplicações a procurar opções onde podem oferecer maior qualidade e refeições mais equilibradas. Hoje, os nossos clientes já podem encomendar através da Glovo, no nosso site ou diretamente nas lojas, garantindo toda a praticidade sem comprometer o sabor e a qualidade que nos distinguem”, acrescentam Constança e João Travassos. 
A indústria global de entrega de refeições está a crescer rapidamente e, em 2022, o mercado de delivery food em Portugal gerou cerca de 1,5 mil milhões de euros, mais 25% do que no ano anterior. Atualmente, existem 50 mil estafetas inscritos nas várias aplicações disponíveis, como a Uber Eats ou Bolt Food. Estima-se que a receita mundial das entregas de refeições deverá subir de 156,7 mil milhões de dólares (134 mil milhões euros) em 2024 para mais de 173 mil milhões (148 mil milhões euros) em 2025, mantendo um ritmo de crescimento anual acima dos 10%. 
“A entrega de comida ao domicílio era um fenómeno marginal antes da pandemia, muito centrado no segmento das pizas, operado predominantemente em horário diurno, para jovens e, essencialmente, através das plataformas web das marcas de restauração internacional. A pandemia forçou um novo comportamento, em que, para sobreviver, quase todas as operações de restauração se centraram no eixo home delivery, único canal de distribuição que respondia cabalmente à procura, ao estarem os clientes praticamente impedidos, por razões de segurança e receio, ao acesso físico aos espaços de restauração”, diz Francisco Fonseca da Silva, CEO da Food4Kings, empresa franchisada da marca Burger King em Portugal. 
Como consequência, acrescenta o responsável, o hábito de solicitar comida, quer para casa quer para o local de trabalho, generalizou-se tanto do lado da procura, como da oferta, sendo, a partir daí, transversal a todos os níveis etários e de rendimento. “Acreditamos que, em média, este segmento (comida solicitada ao restaurante via app) estabilizará em torno de um terço das vendas nos próximos anos, o que vemos como uma mais-valia pela componente de fidelização acrescida e redução dos custos operacionais que representa”, afirma Francisco Fonseca da Silva. 
A crescente utilização de apps de entrega de comida e de compras online tem tido um papel relevante no aumento das refeições consumidas em casa e, simultaneamente, no crescimento das marcas de restauração ligadas à grande distribuição. Neste contexto, o “Comida Fresca”, a marca de restauração do Pingo Doce, tornou-se uma das maiores cadeias de restauração em Portugal em 2024, em número de localizações, com mais de 200 restaurantes. Também a “Cozinha Continente”, a marca de comida pronta que chega aos balcões de atendimento e áreas de take-away das lojas Continente do país, tem revelado um crescimento significativo. Recentemente, foi lançada uma nova gama de refeições funcionais prontas a comer, desenvolvidas de raiz por chefs e nutricionistas.
A Mercadona está igualmente a apostar fortemente na área da comida pronta, uma tendência que o grupo acredita estar a transformar os hábitos de consumo. “Fornecemos bastante matéria-prima para o cliente cozinhar, mas agora existe tecnologia para que ele não precise cozinhar em casa. Em meados deste século, quase não haverá cozinhas nas casas”, afirmou o CEO Juan Roig. A secção “Pronto a Comer” já está presente em todas as lojas portuguesas. Depois de vários anos a gerar prejuízo, esta área passou a ser rentável em 2024 e deverá continuar a crescer, impulsionada pela procura de soluções rápidas e acessíveis.
Para Elsa Matias, arquiteta e designer de interiores, a cozinha é uma peça fundamental numa casa e dificilmente desaparecerá do espaço doméstico. “Se isso algum dia acontecer vamos perder um legado gastronómico, principalmente num país como o nosso, que tem tanta variedade alimentar e formas de cozinhar. Os meus clientes, estrangeiros e portugueses, não a dispensam e até há quem queira duas cozinhas: uma gourmet, integrada na sala de jantar, e outra mais discreta”, explica a arquiteta. Entre a inovação tecnológica e a tradição gastronómica, o futuro da cozinha poderá não passar pelo seu desaparecimento, mas sim pela sua reinvenção.
A revolução do pronto a comer
                                                    
                    
                
                
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            Os portugueses comem cada vez mais em casa, os hábitos alimentares estão a mudar e nesta corrida vencem as refeições prontas. Da cozinha dos supermercados às lojas de ‘take-away’, a tendência é para crescer.
