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A insurgência Wagner: ordem para desdramatizar

A ordem do Kremlin é a de regressar rapidamente à normalidade – enquanto Prigozhin tenta reescrever a história dos dois últimos dias. Pormenor importante: nenhum alto responsável russo colocou a hipótese de envolvimento do Ocidente na rebelião.

Afinal de contas, a insurgência cuja eficácia o grupo Wagner testou este fim-de-semana para espanto do mundo não tinha como propósito tomar o poder em Moscovo, mas tão somente dar indicações sobre a fragilidade das opções militares do regime liderado por Vladimir Putin. Esta foi pelo menos a mensagem gravada deixada por Yevgeny Prigozhin e onde o líder do grupo de mercenários aborda o tema durante 11 minutos. Nos seus propósitos não estaria nenhuma tomada de poder nem um assédio ao Kremlin, mas apenas uma chamada de atenção para a pouca eficácia dos planos da guerra na Ucrânia.

O próprio Vladimir Putin parece ter optado por desdramatizar o assunto. Uma vez encerrado, segundo tudo indica, o presidente russo preferiu não se referir ao diretamente ao tema, deixando essa função aos membros do governo. Falando pela primeira vez desde o motim, Putin apareceu a discursar num vídeo no Kremlin, no âmbito de um fórum de jovens sobre ‘Engenheiros do Futuro’, no qual se limitou a elogiar as empresas por garantirem “o funcionamento estável” da indústria russa “perante os graves desafios externos”.

Os ministros ‘de serviço’ deram a cara de forma mais direta. A Rússia enfrentou “um desafio à sua estabilidade” e deve permanecer unida em torno de Vladimir Putin, disse o primeiro-ministro. “A consolidação de toda a sociedade é especialmente importante; precisamos de estar juntos, como uma equipa, e manter a unidade de todas as forças, reunindo-se em torno do presidente”, disse Mikhail Mishustin em uma reunião do governo transmitida pela televisão. “Como o presidente observou, praticamente toda a máquina militar, económica e de informações do Ocidente está dirigida contra nós”, afirmou.

Antes disso, o ministro da Defesa tinha surgido na televisão para revelar que as medidas de emergência contra o terrorismo em Moscovo e nas regiões vizinhas foram canceladas. O Ministério da Defesa divulgou imagens que mostram Sergei Shoigu a visitar um posto de comando perto da Ucrânia.

Para descanso geral, o ministro das Relações Exteriores, Sergey Lavrov, disse publicamente que a embaixadora dos Estados Unidos em Moscovo "deu sinais" de que o seu país não estava envolvido no motim do grupo Wagner e que esperava a segurança do arsenal nuclear da Rússia, informou a agência de notícias estatal TASS. As palavras de Lavrov são claras: o Kremlin aceita a tese de que não há envolvimento dos Estados Unidos – ou, aparentemente, de quaisquer forças estrangeiras – o que é, para os analistas, um bom sinal. Segundo o ministério, que afirmava citar a embaixadora, Lynne Tracy, os Estados Unidos observam o assunto como puramente interno.

Vários analistas afirmaram que a nota de Lavrov é uma excelente notícia. Ao contrário do que sucedeu no passado – como nos casos dos ataques ao gasoduto Nord Stream da ponte que liga a Rússia à Crimeia – não houve nenhuma declaração do Kremlin que tentasse alinhar interesses ocidentais à questão específica da insurgência Wagner.

Palavras também de desdramatização vieram de Pequim. As autoridades chinesas descreveram a insurgência como “assuntos internos” de Moscovo, Segundo as agências internacionais, o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Andrei Rudenko, conversou com o ministro das Relações Exteriores da China, Qin Gang, sobre a matéria, mas não foram adiantados pormenores. “Como vizinho amigo e parceiro estratégico abrangente, a China apoia a Rússia na manutenção da estabilidade nacional e na obtenção de desenvolvimento e prosperidade", dizia um comunicado do ministério.

Humilhação planetária

Para todos os efeitos, a insurgência resultou evidentemente numa humilhação planetária para Vladimir Putin – com consequências, mesmo no que diz respeito à guerra na Ucrânia, ainda difíceis de identificar. Algo que, para alguns observadores, não é aceitável por nenhum autocrata. Dito de outra forma: quanto tempo vai ainda sobreviver Yevgeny Prigozhin aos venenos e às doenças que têm vitimado um número não despiciendo de opositores ao presidente russo.

“O governo foi abalado. Putin foi pessoalmente abalado. Isto torna-o mais vulnerável, sem dúvida, do que em qualquer outra altura nas duas décadas em que governou a Federação Russa", disse David Petraeus, ex-diretor da CIA, à CNN Internacional. Os mais diversos comentadores disseram de várias formas que Yevgeny Prigozhin tem muito boas razões para se preocupar fortemente com a sua saúde e com a sua sobrevivência. Deixou de contar para o regime, havendo mesmo quem considere que o mais provável é que um número substancial de elementos do grupo Wagner sejam, se o quiserem, incorporados no exército regular – o que é claramente uma boa opção: quem não o fizer será por certo considerado um traidor ao regime e perseguido como tal.