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Se a justiça é cega, a advocacia tem de ser inteligente

A história da advocacia é, em grande medida, a história da resistência à mudança.

Basta compararmos um julgamento na Grécia antiga ou na Roma clássica com o que hoje ocorre nos tribunais europeus: o essencial permanece surpreendentemente inalterado. Juízes de beca, advogados de toga, argumentação oral, produção de prova, decisões fundamentadas. A justiça moderna mantém uma espinha dorsal profundamente tradicional — e, em muitos casos, analógica.


Mas essa solidez, que durante séculos foi sinal de prestígio e estabilidade institucional, está agora a ser desafiada por um novo paradigma: a Inteligência Artificial. E desta vez, não se trata de mais uma inovação tecnológica entre tantas outras. Trata-se de uma transformação estrutural e transversal, que está a reformular os próprios alicerces das profissões jurídicas.


Hoje, as ferramentas de inteligência artificial generativa já conseguem redigir minutas, analisar jurisprudência e legislação, sintetizar documentos extensos, prever desfechos com base em dados históricos e até sugerir estratégias jurídicas. Tudo isto, com velocidade, consistência e — em muitos casos — mais precisão do que qualquer humano em tarefas repetitivas.


Perante isto, o sector jurídico tem duas opções: ou resiste ou cristaliza. É um setor que corre o risco de se tornar irrelevante para a nova economia da decisão rápida, se não for capaz de olhar para a inteligência artificial como parte essencial da prática profissional, desprendendo o advogado dos trabalhos repetitivos, no sentido de o potenciar para as dimensões que mais o distinguem: o raciocínio jurídico, alinhamento ético e a empatia humana.


Contudo, esta integração da IA na advocacia tem de ser feita com responsabilidade. Não basta adotar tecnologia; é necessário compreendê-la, regulá-la e garantir que o seu uso respeita os princípios fundamentais da profissão. O Regulamento da Inteligência Artificial da União Europeia (AI Act) impõe, pela primeira vez, um quadro legal para o desenvolvimento e utilização de sistemas de inteligência artificial no espaço europeu.


Este regulamento aplica-se a todas as entidades que desenvolvem ou utilizam sistemas de IA, incluindo as sociedades de advogados. O setor jurídico não está acima da lei — pelo contrário, tem o dever acrescido de dar o exemplo. O uso de IA para triagem de litígios, avaliação de risco jurídico, análise contratual ou apoio à decisão judicial pode envolver sistemas de alto risco, com impacto direto sobre direitos fundamentais como a proteção de dados, a igualdade de tratamento ou o acesso à justiça.


É aqui que entra a importância dos Comités de Supervisão de inteligência artificial dentro das sociedades de advogados. Estes comités devem ser compostos por advogados com formação ética, técnica e jurídica sobre IA, capazes de avaliar os riscos dos sistemas utilizados, definir limites à sua aplicação e garantir o cumprimento rigoroso do AI Act. Mais do que uma obrigação legal, trata-se de uma exigência reputacional e deontológica. O cliente que confia num advogado espera que este atue com diligência, mas também com consciência tecnológica.


As sociedades de advogados, como todas as outras empresas, terão de realizar avaliações de impacto, garantir explicabilidade e, em alguns casos, notificar as autoridades. A figura do “responsável pela IA” — equivalente ao DPO na proteção de dados — poderá tornar-se obrigatória em certos contextos.


No limite, o que está em causa não é apenas a adoção de novas ferramentas, mas a redefinição do próprio papel da advocacia num mundo onde o conhecimento jurídico já não é exclusivo dos juristas. Se a informação está disponível, acessível e tratada por algoritmos, o valor do advogado passa a residir menos no “saber jurídico” e mais na capacidade de integrar esse saber com contexto, sensibilidade, estratégia e ética.
A toga continuará a ser um símbolo da justiça — mas não pode ser uma barreira à modernidade. Cabe-nos a nós, advogados, garantir que a lógica algorítmica não substitui a justiça, mas a serve. E que a Inteligência Artificial, ao invés de nos afastar da essência do Direito, nos aproxima de uma justiça mais eficiente, acessível e humana.