No ano de todas as eleições, com mais de dois mil milhões de eleitores a serem chamados às urnas, em 60 países, para escolher governantes, incluindo em sete dos dez mais populosos países do planeta, mais ainda se considerarmos as eleições para o Parlamento Europeu, o Fórum Económico Mundial (FEM) considerou a desinformação e a informação falsa como o maior risco global, nos próximos dois anos.
Esta foi a primeira vez que a desinformação e a informação falsa foram consideradas no topo das preocupações nas 19 edições do Global Risks Report, produzido pelo FEM em parceria com o Zurich Insurance Group e a Marsh McLennan.
Em entrevista ao Jornal Económico, Peter Giger, Chief Risk Officer do Zurich Insurance Group, diz que, decorrido o primeiro trimestre do ano, “talvez [estes riscos] não se tenham materializado tanto como algumas pessoas esperavam, mas isso não quer dizer que não existam”.
No estudo, o aumento do perigo que constituem, a desinformação e a informação falsa surge associado à disseminação de conflitos e à crescente polarização nas sociedades.
Surge, também, associado ao desenvolvimento da inteligência artificial (IA), que se destaca no quadro dos riscos previstos para os próximos 10 anos, como a sexta maior preocupação, a seguir à desinformação e à informação falsa.
Peter Giger critica a forma como olhamos para o desenvolvimento. “Só vemos os riscos. Estamos totalmente focados no que pode correr mal. Perdemos o otimismo na inovação”, diz. Sobre a IA, concretamente, mostra-se preocupado que a regulação europeia “seja efetiva a gerir as desvantagens”, mas avisa para o que pode acontecer. “No espaço de 10 anos podemos perguntar-nos porque perdemos a corrida. Porque outros correram mais riscos e, dessa forma, conseguiram uma maior recompensa”, aponta.
Mas os principais riscos, a prazo, são mesmo as alterações climáticas e o que deles decorre, que não estão a ser abordados da forma que deviam. “Os humanos são animais de lutar ou fugir. Reagem a perigos imediatos, mas não estão muito bem equipados para reagir a perigos estratégicos”, diz Giger.
O Global Risks Report 2024 realçou a desinformação e a informação falsa como o maior risco imediato. Como podemos interpretar isto num ano com várias eleições e com conflitos a escalar, especialmente no Médio Oriente? Como é que os governos podem tentar combater a desinformação e a informação falsa?
Primeiro, é interessante que grande parte da desinformação e da informação falsa provenha, na realidade, dos governos. Não devemos subestimar isso. Temos regimes que de forma muito consciente e objetiva tentaram influenciar processos democráticos, e a única coisa que podemos fazer, como democracias abertas, é pugnar pela transparência, assegurar que as pessoas sabem quem está por trás, pois muitas vezes não foi esse o caso. Frequentemente, temos estes trolls que escrevem em chats e em fóruns, que produzem informação que flui nas redes sociais. Se for transparente de onde vem, se for transparente que há uma fábrica algures, isso é uma coisa. Se as pessoas pensarem que são os seus vizinhos isso tem um efeito muito diferente.
Acho que também temos de colocar em perspetiva que, sim, a inteligência artificial dá-nos novas oportunidades, mas os humanos mentiram sempre. Um dos grandes exemplos, de desinformação no processo político na última década, é a teoria da eleição roubada [nos Estados Unidos da América] e não tem nada a ver com inteligência artificial.
Um dos problemas é que as pessoas estão nas suas chamadas câmaras de ressonância e apenas ouvem aquilo que é falado no seu círculo, portanto, voltaram a acreditar que a terra é plana. Essa é a verdadeira ameaça. As sociedades estão numa era do pós-iluminismo. O iluminismo estabeleceu a claridade das ciências naturais e algumas coisas já não eram discutidas. Estamos a voltar a isso, estamos a discutir se a terra é plana, agora, a sério? Todo o debate político é apenas um aspeto disso. Neste contexto, as democracias abertas estão muito mais expostas, mas a transparência tem de ser a resposta.
No campo da inteligência artificial, a primeira resposta é a verificação. Verificar fotografias, sejam elas geradas artificialmente ou não.
A tecnologia vai ser a resposta para a ameaça que a tecnologia criou.
Tendo em conta a forma como a IA está a evoluir, continuamente e de forma muito rápida, como equilibramos os riscos associados que lhe estão associados e os seus benefícios? Parece ser um equilíbrio delicado.
As nossas sociedades são muito defensivas, hoje em dia.
Estamos a discutir os riscos da inteligência artificial e eu uso um exemplo da Suíça. Os carros foram inventados na Suíça. Um cantão introduziu, como regulação, que uma pessoa com uma bandeira vermelha precisava de se colocar à frente de um carro para se certificar que nenhum peão se magoava. Isso resultou, adequou-se ao propósito do carro, e foi abandonado a dada altura. Mas pense nisto, se os carros fossem inventados hoje, pela forma como falaríamos dos riscos, provavelmente nunca os deixaríamos circular nas estradas. Hoje aceitamos que o tráfego de carros mata pessoas todos os anos, porque a utilidade de ter carros é tão grande. Não o fazemos quando falamos de novas tecnologias, só vemos os riscos. Estamos totalmente focados no que pode correr mal. Perdemos o otimismo na inovação.
A inovação só funciona se permitirmos que haja tentativa e erro, e digo isto enquanto responsável de risco, porque o risco tem sempre dois lados. Se não aceitarmos nenhuma desvantagem, não vamos conseguir obter nenhuma vantagem. Estou muito preocupado que a regulação europeia seja efetiva a gerir as desvantagens, mas no espaço de 10 anos podemos perguntar-nos porque perdemos a corrida da tecnologia. Porque outros correram mais riscos e, dessa forma, conseguiram uma maior recompensa.
Olhando a 10 anos, nas primeiras quatro posições do Global Risks Report 2024 temos riscos ambientais. Estão a ser abordados de forma adequada pelos líderes mundiais?
Certamente que não estão a ser abordados de forma adequada pelos políticos, porque há duas eleições pelo meio, aparentemente. Mas também é algo humano. Os humanos são animais de lutar ou fugir. Reagem a perigos imediatos, mas não estão muito bem equipados para reagir a perigos estratégicos. Isso é, de certa maneira, o que vemos.
Esforçarmo-nos hoje para combater riscos a longo prazo vai contra o instinto humano. Esforçarmo-nos hoje para combater ameaças imediatas, como o coronavírus, funciona. Mas vimos quando o choque do preço do gás chegou, no início da guerra na Ucrânia, o que os governos fizeram. Avançaram imediatamente com subsídios para ajudar as pessoas, para preservar o poder de compra. A mesma quantidade de dinheiro investida em alternativas ao carbono teria feito verdadeira diferença, mas isso não era uma ameaça imediata. A ameaça imediata era o aumento do preço do gás e não houve uma consideração estratégica por trás das decisões tomadas.
Parte do dilema em que estamos é que a emissão de carbono devia ser escassa e devia ser gradualmente mais escassa. Geralmente, isso seria regulado com um preço. Mas os nossos políticos parecem ter perdido a crença de que o preço é um bom mecanismo de educação. Preferem outros mecanismos de educação. Se colocarem um preço sobre as emissões de carbono, os avanços tecnológicos começariam a produzir efeitos, porque é assim que a economia funciona. Se algo é caro, é substituído. Se algo é escasso, encontramos outras soluções. Mas temos uma perspetiva de curto prazo onde estamos apenas a tentar resolver os problemas imediatos e gastamos imenso dinheiro para resolver esses problemas.
O dinheiro que os governos gastam para enfrentar o problema do coronavírus é impressionante. Não estamos sequer perto desses valores para enfrentar os problemas de longo prazo, porque não são ameaças imediatas. É isso que se vê no Global Risks Report. Os riscos de curto prazo espelham as manchetes dos jornais por volta da altura em que o inquérito é realizado. Os riscos de longo prazo são muito mais estáveis, e, ainda assim, recebem menos atenção em termos da sua mitigação.
Esteve em Davos, no Fórum Económico Mundial, como acha que os líderes mundiais estão a abordar os riscos que são destacados no GRR 2024?
Primeiro, penso que não há “os” líderes mundiais (risos). Há políticos. Até os negócios não são homogéneos. Penso que há uma corrente de pensamento em desenvolvimento que vê a transição como inevitável. As fontes de energia baseadas no carbono são finitas, vamos ficar sem gás e petróleo a dado momento. A questão é se arruinamos o planeta até lá ou não. Mas a transição é inevitável. Acontecerá uma geração mais cedo ou uma geração mais tarde, mas vai acontecer.
Da perspetiva do negócio, a questão é se querem estar na vanguarda do avanço tecnológico, se querem ser aqueles que vão criar produtos, novos mercados, porque é algo que vai acontecer de qualquer das formas. Para mim, esse é o aspeto fascinante de uma perspetiva de negócio, este desenvolvimento vai ter de ocorrer. Não vamos ter petróleo e gás para mais 200 anos. Isto já aconteceu no passado: a madeira foi substituída pelo carvão e o carvão foi substituído pelo petróleo. Temos muito foco a curto-prazo, só pensamos nas tecnologias que temos. Essa é outra falácia dos políticos. Estamos a tentar subsidiar boas tecnologias, mas 2050 está tão distante. Está a uma geração de distância e o avanço tecnológico será enorme. Voltamos à falta de otimismo na inovação. Nós estamos confiantes de que vamos encontrar soluções para os problemas e ficamos muito defensivos. É aqui que os líderes empresariais têm um papel a desempenhar e mostrar o otimismo, contar a história de que podemos ter respostas, inclusivamente para perguntas difíceis.
Em entrevistas anteriores disse que a ação climática é a próxima revolução industrial. Pode explicar melhor?
É muito claro. Se pensarmos num mundo que já não esteja a depender do carbono, há uma mudança a ter lugar nas tecnologias utilizadas. Toda a energia do aquecimento, toda a energia dos transportes, vai ter de vir de algum lado, porque não acredito que vamos querer voltar a viver nas cavernas.
Isso é outra questão. No processo político faltam vozes otimistas. As vozes que advogam a mudança dizem que não podemos comer carne, não devemos voar, não devemos fazer isto e aquilo. Ninguém está entusiasmado com essa perspetiva, e sinto falta da perspetiva que diz que “temos de compreender como podemos converter os aviões em algo que seja carbono neutro”. Está no horizonte que isso pode ser possível, e isso é verdade para todos os aspetos da vida, mas serão necessários novos produtos e novos serviços. As economias como as conhecemos vão mudar. A nossa empresa tem 150 anos, já estávamos a funcionar ainda antes dos carros serem inventados. As coisas mudam, mas isso não deve ser visto como uma ameaça. Penso que esse é o problema atualmente. A mudança já não é bem-vinda.
O Global Risks Report 2024 foi publicado em janeiro. Como evoluiu? Há novos riscos que não foram observados?
Não acho que haja novos riscos. Os riscos estavam lá, eram reais, se se materializaram ou não, é outra questão. Diria que a desinformação e a informação falsa, talvez não se tenham materializado tanto no primeiro trimestre do ano como algumas pessoas esperavam, mas isso não quer dizer que não exista.
A tensão geopolítica materializou-se, talvez, mais do que esperávamos. É isso que os riscos fazem. O que vemos é que os prognósticos estruturais que o relatório menciona estão em jogo e que o mundo está a seguir uma certa direção. Há tendências estabelecidas que não estão necessariamente encaminhadas para um desfecho positivo ou conveniente. Temos problemas de trocas comerciais, tensões geopolíticas. Não me parece que estas questões vão desaparecer, parece que vão piorar. Não devemos esquecer que o comércio global aumentou de forma massiva a riqueza. O mundo vai sofrer um impacto negativo na sua riqueza se não estivermos a negociar a nível global. É um facto, é teoria económica básica. Não sei se realmente estamos a aceitar esse facto, de que não podemos ser independentes ao mesmo nível de riqueza do que acontecia quando havia comércio livre. Se queremos produzir mais na Europa, tudo bem, mas isso vai ter um custo. Também não há almoços grátis no comércio.
Em novembro temos eleições nos Estados Unidos. Sabendo quão diferentes são as abordagens de Joe Biden e de Donald Trump aos problemas de política externa, prevê um aumento dos riscos geopolíticos se Trump ganhar?
Penso que o nível de riscos geopolíticos está a aumentar, independentemente de quem ganhar. Não acho que seja um problema pelo qual possamos responsabilizar as eleições americanas. O mundo está a tornar-se num lugar mais desconfortável, porque os regimes autocráticos estão, de certa forma, ao ataque. Penso que no Ocidente temos a crença de que, através das trocas comerciais, vamos estar num mundo democrático, onde estamos todos contentes e vivemos em igualdade, e tudo vai funcionar no nosso modelo, porque temos o melhor modelo. Acho que estamos a aprender agora mesmo, da pior forma, que isso não está a acontecer.
As eleições norte-americanas vão ter um impacto, mas acho que a macrotendência não depende das eleições norte-americanas. A Rússia atacou a Ucrânia durante a administração Biden. Podemos culpar um ou outro presidente. Obviamente as eleições terão um impacto, mas a tendência fundamental de uma menor estabilidade geopolítica já existe.
Como está o Grupo Zurich a responder aos riscos destacados no Global Risks Report?
Primeiro, somos um negócio, não somos um país ou uma entidade política. Estamos no negócio de providenciar seguros. Acreditamos que o mundo vai passar por uma fase de transição, então a nossa estratégia é moldada para apoiar um mundo em transição. Penso que estamos a ajudar as sociedades tão bem quanto podemos através dos serviços que fornecemos, das pessoas que empregamos. Tentamos gerir as tensões geopolíticas, mas, enquanto negócio, nós deixámos a Rússia, já não há impacto ali, não temos uma grande presença na China, somos um negócio ocidental – estamos nos Estados Unidos, na América Latina, na Europa, noutros países asiáticos. O nosso negócio tem um desempenho melhor quando certos atributos, como a democracia, um sistema legal de confiança e a liberdade do indivíduo, existem. Não nos devemos iludir. Isso é o que suporta a nossa conduta. No final, tomamos estas decisões enquanto empresa, a forma como nos posicionamos. E é interessente ver as diferenças estratégicas. Na Europa, vemos que os negócios alemães estão muito mais preparados para confiarem nas relações com a China comparativamente a outros países. O futuro dirá quais foram as estratégias certas.
Somos gestores de risco, temos 55 mil gestores de risco na nossa empresa, portanto, estamos muito cientes do risco e espero que isso nos ajude a posicionar-nos de forma que a empresa prospere pelo menos outros 150 anos. Temos uma herança que é uma grande responsabilidade de tentar proteger e desenvolver.