No dia em que se assinala o 74º aniversário da Declaração Schuman, denominado de Dia da Europa e celebrado anualmente, o professor Eduardo Paz Ferreira faz uma análise para o Jornal Económico sobre o percurso da União Europeia e o que significa para si este dia.
Sublinha que “muito do caminho seguido pela União Europeia não deixou de ser dececionante”, apontando a falta de força para defender a democracia, exemplificada pelas “verdadeiras ditaduras” que vivem hoje no seio da Europa, e a má redistribuição de riqueza que “teria sido necessária para o aprofundamento da integração” dos países no bloco europeu.
As guerras na Ucrânia e entre o Israel e o Hamas são motivos de preocupação para o jurista. No caso do conflito que se tem prolongado na Ucrânia, Eduardo Paz Ferreira frisa a “incapacidade da União Europeia de assumir um papel decisivo, unido e isento, que auxiliasse o fim do conflito”. Já no caso do conflito no Médio Oriente, vinca que a UE não está a fazer “tudo o que está ao seu alcance” para travar o “massacre” na Palestina.
Autor de um livro intitulado Da Europa de Schuman à não Europa de Merkel, no qual criticou o papel de Angela Merkel e o excessivo poder da Alemanha na União Europeia, atualmente o especialista em Direito fiscal e financeiro considera que a força da Alemanha “já não é determinante”.
Olhando para o futuro, Paz Ferreira argumenta que a questão essencial “é a de saber qual será o legado que a União Europeia vai deixar”.
74 anos depois, que significado tem para si o Dia da Europa?
Pertenço a uma geração em que as pessoas se dividiam entre dois polos de orientação: a aproximação à Europa democrática ou o crescente alinhamento com terceiro mundismo e o movimento dos não alinhados.
Para quem defendia a orientação europeia, ainda que entendendo que ela não se devia traduzir no afastamento de outros países e, em especial, das antigas colónias portuguesas, eram dois os aspetos fundamentais: a consolidação da democracia afirmada com o 25 de Abril e o apoio ao desenvolvimento económico e social do país que tinha tido já alguma expressão nos finais do século XIX e, em particular, com a adesão à EFTA (Associação Europeia de Comércio Livre).
Muito do caminho seguido pela União Europeia não deixou de ser dececionante. A Europa vista como um espaço de democracia não teve a força necessária para a defender e, no seu seio, vivem hoje verdadeiras ditaduras, ou estados iliberais na bizarra e contraditória expressão que se passou a usar. Por outro lado, a tantas vezes caracterização das Comunidades como um clube de ricos deixou de fazer sentido com vários dos alargamentos, sem que se tivesse, no entanto, assistido a uma redistribuição de riqueza que teria sido necessária para o aprofundamento da integração.
Algum desencanto aqui espelhado seria mais pesado se pensássemos nas orientações da União Económica e Monetária, e no modo como serviu de quadro a um aumento das forças de extrema-direita e à incapacidade de lidar com o problema das migrações.
Ao celebrar o Dia da Europa penso, sobretudo, no seu papel no pós-guerra e na forma como milhões de cidadãos responderam ao apelo de Winston Churchill para se juntarem e reconstruírem a Europa devastada, admitindo que, mesmo num momento em que não existem grandes líderes semelhantes aos pais fundadores da Comunidade, seja possível fazer melhor. E é isso que temos de exigir à União.
Como analisa o momento que a União Europeia atravessa, num contexto marcado pela guerra na Ucrânia?
Com o maior pessimismo pelo desenvolvimento do terror no terreno de guerra e pela incapacidade da União Europeia de assumir um papel decisivo, unido e isento, que auxiliasse o fim do conflito e a punição dos seus promotores, apostados em afirmar a normalidade da barbaridade.
O mesmo diria a propósito do massacre na Palestina em que não me parece que a União Europeia faça tudo o que está ao seu alcance, parecendo paralisada pela sua herança em relação ao povo judeu.
Considera que a Alemanha continua a ditar as regras no bloco europeu? Isso mudou com a saída de Angela Merkel do poder?
Parece-me que a força da Alemanha já não é determinante, mas não considero isso um mal em si mesmo. Nos tempos da chanceler Merkel escrevi um livro intitulado Da Europa de Schuman à não Europa de Merkel que revela o meu pensamento sobre o papel tão sobrevalorizado da senhora Merkel.
Aquilo que é cada vez mais premente é o aparecimento de novos líderes e de novas conceções sobre a política interna e externa.
Face à situação na Ucrânia e ao crescimento dos movimentos eurocéticos, as eleições europeias que se avizinham são das mais importantes das últimas décadas?
As próximas eleições europeias têm, de facto, uma importância fundamental, mas é muito impressionante pensar no desinteresse do eleitorado europeu em atos anteriores. Tivessem as coisas sido diferentes e provavelmente não teríamos chegado a um tal estado de desunião, ao Brexit e à sensação de que ainda há tanto a fazer na União Europeia. Que as eleições deem forças para ultrapassar essa situação.
A União Europeia enfrenta um momento decisivo, com questões fraturantes que suscitam divisões? É importante salvaguardar a união e a coesão?
Sem dúvida, mas não a qualquer preço, mas antes em torno de um projeto que recupere os ideais fundadores e afaste a divisão entre uma Europa de primeira divisão e outra de segunda.
Um Parlamento Europeu forte e sabedor e não constituído basicamente por políticos ligados aos interesses exclusivos dos seus partidos ou grupos políticos, como atestou a preparação das candidaturas, será fundamental para esse caminho de progresso e para o afastamento do tão divulgado afastamento dos valores democráticos e a perceção de uma instituição burocrática, como outras que foram perdendo o poder de sedução.
Como perspectiva os próximos anos na União Europeia? Diria que precisa de se voltar a reafirmar no plano internacional?
Esta é uma questão verdadeiramente difícil, na medida que se insere num pano de fundo de modificação de alianças e multiplicação de conflitos e em que as próprias Nações Unidas não se conseguem afirmar com a força que seria necessária.
Seria bom que a União Europeia não viesse a desfazer-se e a ser recordada como a Sociedade das Nações, criada no final da I Guerra Mundial, mas que se não conseguiu opor à deflagração de um novo conflito.
A Sociedade das Nações, apesar dos vários falhanços, é recordada com aspetos importantes como o conjunto de organismos: a Organização Mundial da Saúde, a Organização Internacional do Trabalho e o Tribunal Permanente de Justiça Internacional que viriam a transitar para as Nações Unidas.
A questão essencial é a de saber qual será o legado que vamos deixar.